Churchill, Roosevelt e Stálin: os três grandes inimigos de Hitler.| Foto:

Na entrevista a seguir, o historiador Marcos Dias Araújo, professor das universidades Tuiuti e Positivo, fala sobre nossa percepção dos eventos históricos e critica o que chama de "hipertrofia" desses mesmos eventos – atualmente, segundo ele, alguns acontecimentos e crises acabam recebendo atenção exagerada da mídia e, muitas vezes, uma interpretação histórica apressada e errônea, como se toda semana se iniciasse uma "nova era". "É preciso lembrar sempre que uma era é definida no seu final, e não no começo", observa o professor.

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Gazeta do Povo – Vivemos um tempo em que o testemunho e o relato pessoal ocupam, mais do que nunca, o lugar antes reservado apenas à História, com inicial maiúscula?

Marcos Dias Araújo – Não pode haver comparação entre os relatos e a História. Os relatos, todos, são fontes para a História. Nesse sentido, comparar um fragmento com a montagem completa do quebra-cabeça é impróprio. O que acontece, em vez disso, é que nossa era, marcada pelo individualismo e pela subjetividade, é ávida pelo reconhecimento desse tipo de relato em detrimento de uma outra fonte, por exemplo, uma tabela econômica, igualmente rica e que nas décadas de 1960 e 70 foi muito valorizada. A História Oficial e a acadêmica não tinham ligação com as memórias das pessoas que viveram determinados períodos. Esse debate, na América Latina e no mundo, já vem sendo feito há tempos e o papel do relato pessoal cresceu sucessivamente no século 20, bem como o gosto pelas biografias. A memória não deve ocupar o lugar da história não só por ser parcial, mas por ser enganosa às vezes. Assim, dizer agora que o Médici na verdade queria revogar o AI-5, quando sabemos que utilizou como ninguém as prerrogativas do ato para massacrar a oposição, é tentar reinventar a memória. Podemos cair em erros absurdos se deixarmos a memória de atores isolados, sem a análise meticulosa do historiador, dar a linha de interpretação. Nem toda memória é verídica ou bem informada, nem todo relato é aproveitável.

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No livro Tempo Passado, a crítica argentina Beatriz Sarlo, pensando as ditaduras latino-americanas, afirma: "(...) a história oral e o testemunho restituíram a confiança (na) primeira pessoa que narra sua vida (privada, pública, afetiva, política) para conservar a lembrança ou para reparar uma identidade machucada". Esse tipo de "reparação" é essencial ao entendimento de um processo histórico como, por exemplo, o dos chamados Anos de Chumbo, no Brasil?

É muito importante, como é o relato de todo personagem, menor ou maior, envolvido em situações históricas traumáticas. Relatos de sobreviventes do Holocausto, de torturados das ditaduras, de assassinos de genocídios são fundamentais para a construção do objeto histórico. A função reparadora do discurso, numa analogia freudiana, tem o sentido de libertar o indivíduo. Isso é particularmente forte na Argentina, com sua ditadura de dezenas de milhares de mortos. No Brasil, esse papel é menor pelo número também menor de afetados diretos pela violência do regime.

Mas a Lei de Anistia, da forma como foi aplicada aqui, e a resistência em abrir os arquivos da ditadura não nos impedem de conhecer a história completa daquele período?

Quanto à resistência na abertura dos arquivos, sim. É um grande absurdo. Não existe motivo para os militares de hoje defenderem os ditadores e os assassinos que naquela época o exército encobriu em suas entranhas. Foi uma mostra de covardia do governo Lula não bancar a abertura de todos os arquivos. As Forças Armadas são a instituição mais resistente à admissão de culpa. É como se jamais errassem no seu julgamento, mesmo quando agiram de maneira criminosa, como no caso da Revolta da Chibata, em Canudos e na ditadura. Quanto à lei da Anistia ter protegido os torturadores e assassinos, os possíveis processos poderiam elucidar a localização de corpos e casos particulares que trariam grande alívio aos familiares das vítimas, mas não mudariam significativamente a visão que temos do período.

No caso do colapso do comunismo, a abertura dos arquivos secretos dos países na esfera de influência da União Soviética, e dos seus próprios, parece ter gerado uma infinidade de relatos sobre a personalidade e o caráter de líderes como Stálin e outros. Isso ajuda a entender o que se passou por trás da Cortina de Ferro?

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A publicação de diversas biografias dos líderes soviéticos – Lênin e Stálin – está dentro da onda de biografias detratoras, usando mais a tática da contagem de corpos do que a explicação inédita das vicissitudes políticas. Outras biografias usam documentos inéditos para redimensionar a figura biografada, mostrando aspectos curiosos, perversos ou inusitados: os casos extraconjugais, as poesias amorosas, os vícios. Nesse sentido, muitas biografias estão no campo do escândalo jornalístico da pior qualidade. Mas não devemos nos enganar: a abertura desses arquivos permitiu conhecer muito mais sobre os diversos aspectos da vida social, cultural e policial dos regimes comunistas.

E quanto aos eventos mais recentes do 11 de Setembro: o fato de conhecermos todos os detalhes daquele dia – quase minuto a minuto, graças às tecnologias disponíveis – e de nos sentirmos todos "testemunhas oculares" do que ocorreu pode desviar a atenção do quadro histórico mais amplo?

Com certeza o caráter espetacular e o uso ideológico do 11 de Setembro em nome da guerra contra o terrorismo nos iludem. A guerra do terrorismo internacional contra os Estados Unidos data de dez anos antes. O mesmo World Trade Center não foi atingido pela primeira vez em 1993? E poucos lembram do atentado gigantesco contra as tropas americanas em Beirute, em 1983. O ato de 11 de setembro de 2001 teve caráter espetacular, de mídia. É claro que a posição americana mudou, as liberdades foram cerceadas em muitos lugares e as coisas ficaram mais complexas no mundo da segurança e da defesa. Mas dificilmente eu localizaria o 11 de Setembro como um evento tão decisivo como foi a Revolução Francesa ou a Segunda Guerra Mundial. É a hipertrofia do evento. Sua dimensão é aumentada. A chegada de Colombo ou a descoberta de Gutenberg são eventos que foram superdimensionados em sua importância posteriormente. Hoje fazemos isso com os eventos do presente.

Atualmente vivemos uma crise econômica tratada, já, como evento histórico – prova disso é a constante comparação com outra, a de 1929, esta devidamente incorporada aos livros de História. Há um distanciamento ideal – cronológico, especialmente – para se interpretar um fato como histórico?

Não existe essa coisa de distanciamento. O historiador desenvolve um olhar pouco ingênuo sobre o passado e, portanto, sobre o presente. Muitos se iludem com figuras, discursos, instituições. Para os jornalistas, toda mudança de governo ou de política é uma "nova era". Isso é bobagem. É preciso lembrar sempre que uma era é definida no seu final, e não no começo. Os jornalistas gostam de ver o nascimento de uma nova fase a cada semana para vender revistas aos incautos. Na verdade, a vida continua mais ou menos a mesma e pouca coisa muda de fato.

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