Escritores não vivem só para escrever, escrevem para viver
Antes, o escritor curava e às vezes salvava de perigo de morte os doentes, o escritor resolvia em tribunal divórcios ou crimes entre marido e mulher, o escritor construía pontes e dormia mal de noite porque as estruturas se fragilizavam nos sonhos, o escritor ordenava papéis, carimbava certidões, lambia selos apagando-se numa repartição pública. Agora, o escritor escreve.
Talvez seja devido ao clima, mas pode ser por causa da culinária ou mesmo pelo posicionamento planetário. Difícil é apontar as causas, mas Portugal é um país que, mais que azeite de oliva e vinho, produz uma literatura de qualidade que transcende oceanos e fronteiras terrestres. Há autores que, pelo impacto de suas obras junto ao público e à crítica, já fazem parte do panteão lusitano, como Fernando Pessoa, Eça de Queirós e mesmo José Saramago, morto este ano, o único autor do idioma que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura.
Atualmente, existe uma geração de escritores que, na avaliação da jornalista portuguesa Susana Moreira Marques, forma uma nova e inédita constelação literária. Depois de mais de uma década acompanhando a literatura lusitana, Susana aponta para uma mudança: os escritores portugueses que surgiram após a Revolução dos Cravos (25 de abril de 1974) já não precisam de uma profissão liberal para pagar as contas e, no pouco tempo livre, escrever prosa ou poesia. Em reportagem exclusiva para a Gazeta do Povo, ela analisa alguns dos nomes que mais se destacam e ainda faz uma radiografia do mercado editorial.
São muitos os autores e, se fosse para citar os mais expressivos, faltaria espaço, mas em qualquer antologia sobre o que há de mais relevante na literatura portuguesa contemporânea não podem deixar de ser citados Gonçalo Tavares, Adília Lopes, João Tordo, Inês Pedrosa, Manuel de Freitas, José Luis Peixoto, valter hugo mãe (assim mesmo, em minúsculas) e Patrícia Reis.
Mas, além de viverem no país de 92 mil quilômetros quadrados situado ao Sudoeste da Europa, há algo que os aproxima, no que diz respeito ao fazer literário?
O doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) Nelson de Oliveira acredita que não há pontos de contato entre os prosadores e poetas portugueses contemporâneos. "Hoje, a diversidade de cosmovisões e de estilos é grande. Todas as escolas literárias convivem pacificamente", diz Oliveira, autor de Axis Mundi: O Jogo de Forças na Lírica Portuguesa Contemporânea.
Mas, apesar de perceber, por exemplo, a inexistência de um movimento literário lusitano, com temas e linguagem comuns, Oliveira afirma que esses autores se irmanam porque se interessam pelo bizarro. "Para esses poetas e prosadores, o mundo contemporâneo é apenas isso: um espaço cruel e irracional. E as suas obras são a representação violenta desse espaço grotesco", diz.
Enquanto Oliveira compreende a admirável ficção portuguesa contemporânea como focada no grotesco, Samir Mesquista chama a atenção para o fato de que alguns prosadores, como José Luis Peixoto, Gonçalo Tavares e valter hugo mãe, também são poetas. "Isso faz com que a linguagem da prosa seja carregada de imagens e de um ritmo que a diferencia bastante, por exemplo, dos autores brasileiros", afirma o curitibano, autor de dois livros Dois Palitos e 18:30.
Mesquita é curitibano, cresceu em Campo Largo, estudou em Alfenas (MG), passou uma década em São Paulo e, há alguns anos, uma proposta de trabalho e de experiência o levou a Portugal. Atualmente, é redator de uma agência de publicidade em Lisboa. Ele conta que ler a literatura do país em que vive acaba proporcionando um sabor diferenciado. "Você reconhece ambientes, emoções e comportamentos comuns ao povo, o que torna os textos mais interessantes", comenta o curitibano que, entre um trabalho e outra folga, diz ter na literatura portuguesa contemporânea assunto para muita conversa com os seus colegas lisboetas.
O jornalista Jefferson Del Rios, que viveu por dois anos em Portugal e atualmente escreve crítica de teatro para o jornal O Estado de S. Paulo, lembra de um nome fundamental da literatura portuguesa: António Lobo Antunes, tido como um dos desafetos de Saramago. "Antipatias e rivalidades no meio literário nunca foram novidades. É uma falsa polêmica", diz Rios, apontando para o que, de fato, interessa: "Antunes é um gigante literário, conhecido pelo experimentalismo polifônico."
Como se lê, vê e percebe, as vozes lusitanas contemporâneas são muitas. Tantas, que podem até vir a confundir o leitor curioso. Aqui, nestes trópicos nada tristes, é possível ler alguns desses autores, afinal, até existe uma editora brasileira, a Língua Geral, especializada em publicar os bambas portugueses. Mas, como a arte é longa, e o espaço desta página, breve, o assunto segue nas páginas seguintes.
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