Livro
Antonio Tabucchi. Cosac Naify,
128 pp., R$ 32,90.
Ano de 2013. Em uma viagem a Lisboa, me encontro, em um fim de tarde, com o escritor português Almeida Faria. Ele me propõe um estranho passeio: visitar o Cemitério dos Prazeres, o maior da capital portuguesa, localizado na freguesia da Estrela. Admito: é com bastante desconforto que aceito seu convite. Mal atravessamos o portão principal — desse cemitério cujo nome não combina com os sentimentos que costumamos associar à morte —, deparo-me com o túmulo do escritor italiano Antonio Tabucchi, falecido na capital portuguesa no ano anterior.
A poucos passos, está enterrado José Cardoso Pires de quem — apesar da diferença de 26 anos de idade — posso dizer, com certo exagero, mas também com sincero afeto, que fui amigo. Detenho-me diante da campa de Cardoso Pires, fecho rapidamente os olhos e — apesar de agnóstico — esboço o que talvez seja uma oração. Algumas palavras de agradecimento, por sua existência e pelo carinho que me dedicou quando, ainda um jovem repórter, o entrevistei pela primeira vez. Penso em Cardoso Pires, mas algo me incomoda bem ao lado. É o túmulo de Tabucchi. Algo me chama.
Para me acalmar, me apego à presença gentil de Almeida Faria que, com grande suavidade, me aponta as alamedas e um lindo sol que cai no fim da tarde. Ainda bem que ele está ali, pois algo realmente me incomoda. Penso em lhe falar a respeito — mas como falar a respeito de algo que nem eu mesmo sei o que é? O sentimento, confuso, é o de que Tabucchi, desde o além, tenta me soprar uma mensagem. Quase ouço sua voz. Não sou supersticioso. Tampouco creio em fantasmas. Mas algo insiste em me incomodar. E mesmo depois, quando Almeida Faria me leva a passear pelas alamedas do cemitério, o sentimento permanece. Uma pergunta não me sai da cabeça e, sem dizê-la em voz alta, eu a faço a Tabucchi: “O que você quer de mim?”.
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Leia a matéria completaChego de volta ao hotel e me tranco em meu quarto. Não aprecio esses sentimentos difusos que teimam em me azucrinar nas horas mais fúteis. Estou com um pouco de medo, admito, mas estou, sobretudo, irritado. É com grande dificuldade que, enfim, consigo pegar no sono. Agora, dois anos depois, cai-me nas mãos Réquiem (Cosac Naify), romance breve que Tabucchi publicou no ano de 1991. A experiência no cemitério, ao lado de Almeida Faria, retorna inteira. Já com a literatura aprendi que o passado não passa. Histórias como esta só confirmam minha ideia.
À página 19, em meio ao capítulo “II”, deparo-me com uma visita que o narrador (o próprio Tabucchi?) faz ao mesmo Cemitério dos Prazeres.
O inferno das coincidências começa a me incomodar — até porque essa é, de fato, a primeira vez que leio Réquiem, romance que, em uma edição portuguesa, tenho há muitos anos em minha biblioteca. Este exemplar luso já me acompanhou na mala durante outra viagem a Lisboa, na virada do século 21, mas simplesmente não consegui abri-lo. Por quê? Durante sua visita ao cemitério, também o narrador de Tabucchi esbarra em vultos improváveis e em espectros. Procura o túmulo de um amigo, Tadeus Waclaw. Explica ao zelador do cemitério, a quem pede orientação: “É um velho amigo, passamos muito tempo juntos, como irmãos, gostava de lhe fazer uma visita, gostava de lhe fazer uma pergunta”.
Sempre as perguntas, sempre as interrogações dirigidas aos mortos, sempre as questões que ficarão sem resposta. “E acha que ele lhe vai responder?”, reage, assustado, o guarda do cemitério. “Gostaria de perceber uma coisa que nunca percebi, ele morreu sem me explicar”. O zelador logo pensa em algo relacionado às mulheres, mas o escritor o corrige. Não se trata disso: “gostaria de perceber a maldade, se maldade houve, não sei”.
Finalmente o narrador chega à tumba, na rua Um Direita, número 4664. “O guarda tirou os óculos e sorriu”. A morte e seu peso (e seus fantasmas) é sempre uma questão de distância. É, antes de tudo, um problema espacial. “Era uma campa modesta, apenas uma lápide assente no chão. Ele estava lá com seu nome polaco”. É com Tadeus, então, que o narrador se põe a conversar.
Não é a primeira vez, nem será a última, que literatura e vida se embaralham e assediam. Isso está presente em Réquiem da primeira à última linha. Sonho e realidade: será que podemos mesmo separá-los? Melhor não tentar, até porque eles parecem indivisíveis. A ficção de Tabucchi demonstra o caráter vago da fronteira que os delimita. O sonho só é sonho não porque se afasta da realidade, mas, ao contrário, porque a invade de modo ameaçador. É dessa invasão que Tabucchi tira seu romance, em que os vivos se misturam com os mortos, os personagens de ficção com os personagens reais, a vida e a morte — e tudo é tão embaralhado que se torna muito difícil distingui-los.
No posfácio do romance, à página 110, Tabucchi relata um sonho que teve com o pai. O pai do escritor faleceu com um câncer na laringe. No sonho, os dois se encontram em um quarto de hotel. As idades se invertem: vestido de marinheiro, o pai é agora um rapaz de apenas 25 anos, enquanto o escritor é um homem mais velho, que pode ser o pai de seu pai.
No sonho, o pai de Tabucchi — que, por causa da doença, passou seus últimos anos inteiramente mudo — tem um buraco no pescoço, à altura da laringe. E é através desse buraco (responsável por seu silêncio na vida real), e não pela boca, que ele agora fala!
Creio que esse relato não só diz muito a respeito dos sonhos, mas talvez mais ainda a respeito do caráter da ficção — que Réquiem representa com tanta ênfase.
Os fatos se embaralham. As verdades se invertem e experimentam novas posições. Os limites se esfumam. Fantasmas são e não são fantasmas. Nós também, “homens verdadeiros”, representamos uma verdade muito instável — somos, mas não somos “homens verdadeiros”. Na nota introdutória, Tabucchi nos diz que Réquiem, “além de uma sonata, é também um sonho”.
Penso agora nas sonatas, composições musicais feitas para poucos instrumentos. Na abertura do livro, desmentindo essa ideia, Tabucchi lista os 23 personagens que aparecem em sua narrativa. Tantos? Mas também tão poucos. A ficção os dissolve e os mistura — do mesmo modo que não apenas nos sonhos, mas também no mundo real, estamos definitivamente atados.