O cristão Leon Tolstói estava convencido de que a arte no fim do século 19 havia se degenerado por completo, não correspondia às necessidades mais urgentes do povo, servia apenas a uma casta de endinheirados perdulários, produzia falsificações e deturpações em vez de obras dignas, apelava apenas à sensualidade e não aos bons sentimentos, explorava impiedosamente os trabalhadores da cultura, criava um mercado de críticos que nada entendiam do que escreviam. Esse diagnóstico cruel, dividido nos 20 capítulos do ensaio O que é arte?,tem um objetivo programático muito claro: a revolução do mundo artístico em renovadas bases cristãs.
Publicado originalmente em inglês, o trabalho, que consumiu 15 anos de esforço e se concluiu em 1898, é produto da iluminação e do desencanto — a princípio iluminação, porque, após concluir a redação do monumental Anna Kariênina em 1877, Tolstói está pleno de um sentimento religioso que o guia ao monastério de Optino; e em seguida desencanto, porque, apenas dois anos depois de entrar em contato com a Igreja Ortodoxa, percebe que a institucionalidade mata a fé verdadeira. Em outubro de 1879 observa em seu diário que só os perseguidos estão com a verdade e abandona a igreja. Como nos afirma Richard Pevear no prefácio à edição americana, o escritor cultivou a partir dali a ideia de um cristianismo anarquista, em que o “bem (…) conduziria a humanidade finalmente a uma sociedade sem estado, igualitária, agrária, de vegetarianos não fumantes e abstêmios, que se vestiriam como camponeses e praticariam a castidade antes e depois do casamento. Este seria o Reino de Deus na Terra”. Por isso a concepção de bem desempenha papel central nesse enredo.
Para abrir caminhos ao que chama de “arte do futuro”, Tolstói se lança a repensar o fenômeno estético, desabonando os pensadores que tentam definir obras de vários gêneros a partir da beleza, termo considerado nebuloso e subjetivo. “Assim, a teoria da arte baseada na beleza (...) não vai além de estabelecer que é bom aquilo que foi e é considerado agradável por nós — isto é, por um certo círculo de pessoas.” Já que não se trata disso, arte, para ele, então “começa quando um homem, com o propósito de comunicar aos outros um sentimento que ele experimentou certa vez, o invoca novamente dentro de si e o expressa por certos sinais exteriores”.
A legitimidade dessa fraterna transmissão de sentimentos se perdeu no correr dos séculos. Segundo Tolstói, no início do cristianismo, por exemplo, os artistas partilhavam com o povo uma consciência religiosa verdadeira. A partir da Renascença, entre outras coisas devido a uma Igreja que traía os ensinamentos de Cristo, as classes abastadas, e nelas os artistas que as orbitavam, cortaram os laços que as atavam a tal espírito religioso, sem nada que pudesse substituí-lo. A produção artística passou a atender a demandas vazias desse pequeno grupo de pessoas, que, sem a vitamina cristã, tinha a beleza como métrica de arte boa e, portanto, “quanto prazer proporcionava”. E tanto mais próximo da beleza e do prazer, tanto menos do bem, uma vez que o “conceito de beleza não coincide com o de bem” e é “inclusive oposto a ele”.
Desligada dessa união imbuída de preceitos cristãos e restrita a círculos específicos, a arte pauperizou-se em seu conteúdo, sucumbiu ao hermetismo e artificializou-se de modo perverso. “Recentemente, não só a imprecisão, o mistério, a obscuridade e a inacessibilidade às massas passaram a ser consideradas mérito e condição de poeticidade das obras artísticas, mas o mesmo acontece com a imprecisão, a indefinição e a ineloquência”, está traduzido na página 100. Os perpetradores desse crime são muitos. Baudelaire, Mallarmé, Verlaine — mistificadores e absurdos; Beethoven, Wagner, Strauss — barulho incompreensível. Dos poetas extrai trechos a fim de avalizar seu argumento; de Wagner, para ridicularizá-lo, descreve a apresentação de uma de suas óperas. A Nona sinfonia, de Beethoven, é uma realização fracassada, enquanto os contos de Zola ou de Kipling não o tocaram nada.Arte falsa. Arte perniciosa.
Em toda a crítica paira esta afirmação peremptória: “Grandes obras de arte são grandes somente porque são acessíveis e compreensíveis a todo mundo”. Como a Bíblia, a música folclórica, as piadas. Sem grandes descrições, sem complexidades psicológicas, sem elaborações mesmerizantes. Os críticos profissionais são supérfluos nesse contexto. “A crítica não poderia nem pode existir em uma sociedade em que a arte não está dividida em duas.” Ou a obra é compreensível e prescinde de explicações, ou não é boa e não deve ser vista. A receita para uma arte maior ou universal já está dada pelo povo. O artista precisa se concentrar em transmitir sentimentos verdadeiros e simples, compatíveis com a consciência religiosa da época em que vive, estimulando o bem, ou seja, a vida fraterna, “nossa união de amor uns com os outros”. A arte, consequentemente, é um “órgão espiritual da vida humana”, eivado de possibilidades transformadoras para a construção de uma sociedade mais amigável.
Por óbvio, a definição de arte baseada na emoção não dá conta, nem na época, nem agora, da amplitude das formas artísticas. Sentimento é, assim como beleza, conceito vago. Compõe uma obra, mas não é critério ao mesmo tempo necessário e suficiente: um apaixonado que se declara para outro comunica um sentimento por sinais exteriores, mas nem por isso está fazendo uma obra de arte. Outros vocábulos, como “fraternidade”, “bem”, “amor”, também não ajudam a dar corpo às concepções dele. Ainda assim, estamos dentro de um curioso manifesto a favor de uma arte popular e religiosa; se a apresentação elegante destoa da linguagem inflamada, não é mais que liberdade poética. No fim da vida, ele havia se tornado um intelectual comprometido com sua época.
Ética e estética
Mesmo propondo profundas alterações na sociedade, o ensaio de Tolstói não deixa de ser moralista e conservador nas suas preocupações mais imediatas; porém, destituído do ingênuo conteúdo religioso, o texto do autor de Guerra e paz assinala essencialmente o caminho que a arte tem, à sua maneira, tentado percorrer nos nossos tempos, às vezes com sucesso — um inconformismo desafiante. Ainda que experiências artísticas de diversos matizes continuem ocupando galerias, teatros e livros, a arte que mais mobiliza o público é aquela que entendeu seu papel eminentemente político e só vê sentido numa produção que aproxime ética e estética. Os saraus da periferia, por exemplo, fizeram explodir uma intensa produção não mais oriunda do artista inserido nas grandes cadeias produtivas, mas proveniente da figura anônima e verdadeira que Tolstói tenta elevar como o modelo.
É evidente que essa postura não está confinada a um estrato da população. A ideia de que a arte tem papel crucial no modo como compreendemos o mundo e como o transformamos tomou a frente dos debates atuais tanto nos países ocidentais (nos quais o Brasil não se inclui) quanto na América Latina. Do mesmo modo que Tolstói prezava a Bíblia porque ela tinha, e ainda tem, a capacidade de dizer às pessoas algo que se considera necessário, hoje a arte e os artistas também tentam se conectar pela capacidade de dizerem às pessoas algo sobre os problemas do mundo e, principalmente, sobre sua superação. A “arte do futuro”, que é a nossa, se desvia da perspectiva moralista da bondade; prova apenas que, a despeito de seus impasses, está atenta ao tempo e também quer se fazer necessária.