Faz três meses que o pedreiro Maurício Paes de Souza tenta pagar a última prestação do Uno 2007, comprado há quatro anos. A parcela é de R$ 630, mas, sem emprego desde janeiro, com a mulher também desempregada e dois filhos para sustentar, ele corre o risco de perder o automóvel - assim como já perdeu tantas outras pequenas conquistas de consumo dos últimos anos. Aos poucos, Souza se dá conta de que não pertence mais à mesma classe social da qual chegou a fazer parte, como outros milhares de brasileiros. Só no último ano, quase um milhão de famílias desceram um degrau na escala social.
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44% dos brasileiros trocaram de marca para economizar
O brasileiro está dando nó em pingo d’água para economizar no dia a dia. Esse movimento, que acontece desde o início do ano passado, atinge várias frentes: do carrinho do supermercado às horas de lazer em família, e até o botão ligado do stand by da TV.
“Com mais de 10 milhões de desempregados no País, o consumidor está com o bolso apertado”, afirma Domenico Filho, líder de indústria da consultoria Nielsen, que monitora o consumo.
Segundo ele, a retração do consumo ocorre de forma generalizada. Mas destaca que a classe C, a nova classe média que emergiu nos últimos tempos e que agora dá um passo atrás na escala social, é quem está puxando para baixo o consumo de itens básicos.
Pesquisas feitas pela consultoria ao longo de 2015 e no início deste ano mostram que 61% dos brasileiros estão economizando no entretenimento fora do lar, 64% reduziram os gastos com combustível e eletricidade e 44% decidiram trocar as marcas preferidas pelas mais baratas para continuar levando para casa os mesmos produtos.
A migração de marca atinge todos os itens: alimentos, bebidas, higiene e limpeza. Com isso, mais 50% dessas categorias tiveram perda de venda de marcas líderes. Domenico diz que o movimento afeta até artigos de higiene e beleza, que normalmente passam ilesos pelas crises.
Foi a primeira vez que houve um movimento inverso ao da ascensão socioeconômica que vinha ocorrendo desde 2008. O estudo, da Associação Brasileira das Empresas de Pesquisa (Abep), mostra que, de 2015 para 2016, a classe que abrange famílias com renda média de R$ 4,9 mil (chamada de B2) perdeu 533,9 mil domicílios. A categoria dos que ganham R$ 2,7 mil (C1) encolheu em 456,6 mil famílias.
Ao mesmo tempo, as classes mais pobres ganharam um reforço. Na categoria em que as famílias têm renda média de R$ 1,6 mil (C2), o incremento foi de 653,6 mil domicílios. Outras 260 mil famílias passaram a fazer parte das classes D e E, com renda média de apenas R$ 768.
“Porcentualmente, esse movimento é pequeno. Mas, em termos absolutos, estamos falando em um acréscimo de mais de 910 mil famílias nas classes pobres em apenas um ano. É um número expressivo”, afirma Luis Pilli, da Abep.
Um resultado que chamou a atenção é que a classe A, a mais rica e que conta com reservas financeiras e de patrimônio para se defender da alta da inflação e do desemprego, cresceu em 109,5 mil famílias no período. Com isso, ao todo, 1,023 milhão de domicílios, ou cerca de 4 milhões de pessoas, se movimentaram de alguma forma na escala social por causa da crise - a maioria, porém, perdendo o status anterior.
O que impressiona nessa crise, segundo Pilli, é a rapidez com que as famílias estão abrindo mão de itens como o segundo carro ou uma casa maior. “São decisões que geralmente demoram algum tempo para serem tomadas.”
O pedreiro Maurício Paes de Souza entende bem o que Luis Pilli está querendo dizer. Em pouco tempo, ele perdeu muita coisa. Quando comprou o carro usado, por R$ 15 mil, há quatro anos, costumava gastar R$ 700 por mês no supermercado, pagando à vista. “Hoje, gasto a metade, procuro promoção e pego o cartão de um e de outro emprestado.” Os filhos comiam carne todo dia e tinha iogurte na geladeira. Agora, sem o salário de R$ 3,5 mil, “é arroz e feijão e, às vezes, falta dinheiro para comprar ovo.”
Em breve, o pedreiro pode perder o carro. “Ficam mandando mensagem de busca e apreensão, mas não adianta eu ir lá para conversar se não tenho dinheiro.”
Baque
Para Maurício de Almeida Prado, sócio-diretor da Plano CDE, consultoria especializada na baixa renda, os números da Abep indicam que quem está sentindo o baque da crise é principalmente a classe média. “Os estratos sociais que dependem do emprego formal foram os mais afetados”, explica.
Os mais pobres, segundo ele, estão acostumados com a informalidade. “Eles se viram muito, fazem coisas em casa, vendem cosméticos, por exemplo. A classe média mais alta é dependente do emprego formal e tem dificuldade de gerar renda extra.”
Nesta atualização da distribuição das famílias por classe, feita pela Abep, foram usados dados dos principais institutos de pesquisas que visitaram as casas dos brasileiros em 2015 e no início deste ano para descobrir como andava o padrão de vida da população. A associação utiliza o Critério Brasil, que tenta estimar a renda permanente das pessoas por meio da posse de bens e de outros quesitos.
O coordenador do centro de Políticas Públicas do Insper, Naercio Menezes Filho, acredita que as famílias estejam se desfazendo dos ativos e por isso desceram degraus na pirâmide social. “Isso era esperado, porque a crise é muito forte”, diz. Ele ressalta, porém, que não há números oficiais do IBGE para avaliar esse movimento.
Renda
Já Adriano Pitoli, sócio da Tendências Consultoria Integrada, traça um cenário pior do que o da Abep. Ele estuda as mudanças na pirâmide social olhando apenas a renda monetária recebida pelos trabalhadores - e não a permanente, como fazem os institutos de pesquisa. Em estudo feito no final do ano passado, o economista da Tendências apontava, com base em projeções, que 3 milhões de famílias desceriam um degrau na escala social em três anos, entre 2015 e 2017.
De lá para cá, com o agravamento da crise, Pitoli refez as contas e projetou que 4,2 milhões de famílias seriam devolvidas à base da pirâmide. Só no último ano, a baixa teria sido de 1,8 milhão de famílias.
Pitoli explica que os critérios do seu estudo e o da Abep são diferentes. Ele olha renda monetária, que tem um impacto mais imediato no padrão de vida das famílias. Já a Abep usa a renda permanente, medida pela posse de bens, que teoricamente, demora mais para aparecer.
“Mas o estrago está feito”, diz Pitoli. Segundo Pilli, da Abep, o País não voltou 20 anos atrás. “Mas, se continuarmos fazendo escolhas erradas, podemos retroceder.”
Empreendedores se arrependem de abrir negócio
O sonho da família Silva de abrir um negócio próprio durou pouco. No início do ano passado, Verônica Rodrigues Miranda e o marido Guilherme Vinícius Arruda da Silva pediram demissão, pegaram a filha Lavinya, de 3 anos, e foram de São Paulo para Pernambuco para abrir uma pequena confecção de jeans.
Eles tinham indicação de amigos de que, com o crescimento do consumo, o mercado estava favorável para o setor de confecção. Verônica era secretária escolar e Guilherme, gerente de posto de gasolina em São Paulo. Juntos, tinham uma renda mensal em torno de R$ 6 mil.
Com cerca de R$ 30 mil de economias, compraram máquinas de costura, tecido, linha e começaram a fabricar calças, shorts e jaquetas jeans. Só que, de uma hora para outra, foram surpreendidos porque os clientes cortaram as compras. “Tivemos de vender tudo para pagar o que devíamos e voltamos para São Paulo com uma mão na frente e outra atrás”, conta Verônica, que hoje está à procura de um novo emprego.
O marido, há duas semanas conseguiu se recolocar na mesma função, mas com salário menor. Ganhava cerca de R$ 4 mil e hoje tira R$ 3 mil. Na época que saiu de São Paulo, ele cursava a faculdade de administração. Agora, não tem renda para retomar os estudos.”Empreendemos na hora errada, quando o País começou a entrar em crise”, diz ela.
A sorte foi que a família manteve a casa própria equipada em São Paulo, com geladeira, fogão, duas TVs, micro-ondas. Verônica admite que o seu padrão de vida caiu, e muito. “Antes saíamos para restaurante, balada ou íamos para a praia todo final de semana. Agora paramos com tudo, porque não temos condição: hoje o lazer é praticamente ficar em casa.”
Mais barato
No supermercado, antes gastava cerca R$ 400 por mês. “Hoje é só uma cesta básica e vou mantendo a mistura”, conta, ao explicar que opta sempre pelo produto mais barato. Também os itens supérfluos saíram da lista de compras da família.
A redução de quase 50% da renda em apenas um ano e o fim das economias deixaram um saldo negativo nas contas da família. “Estamos com a documentação do carro atrasada e as contas de água e luz também”, diz. Mas a prestação do veículo, de R$ 1.100, está em dia, porque está sendo paga com a ajuda de parentes.
Apesar do tombo, a família Silva não desiste. “Agora, é tentar arranjar um emprego e se reorganizar financeiramente”, diz Verônica.
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