A crise da dívida brasileira vai muito além daquela devida por estados e União: empresas e famílias estão afundadas em débitos caros e difíceis de honrar com a renda desidratada pela recessão. A gravidade da situação, porém, impulsiona segmentos que salivam justamente sobre créditos inadimplentes.
Negócios como o de reestruturação de grandes dívidas corporativas, aquisição de carteiras de “crédito podre” e recuperação de contas em atraso estão tendo o ano mais movimentado dessa indústria. Existem hoje, no Brasil, R$ 403,5 bilhões em créditos bancários renegociados ou reestruturados – quando há mudanças nas condições de financiamento devido a dificuldades enfrentadas pelo devedor –, 82% mais do que em março de 2014, segundo números do Banco Central (BC). Considerando-se apenas as empresas, o valor subiu 85% no período, para R$ 176,56 bilhões.
Não há dados consolidados sobre o mercado de assessorias para reestruturação corporativa, mas os casos de 20 grandes empresas que anunciaram ou concluíram este ano processos de reestruturação ou recuperação judicial mostram como a demanda está aquecida. O débito em jogo nessas empresas é de R$ 144,7 bilhões.
Parte relevante é formada por títulos de dívida (debêntures e bonds emitidos no exterior), que não entram nas contas do BC. São casos de destaque como os de Oi – que passa pela maior recuperação judicial já feita no país, com dívida de R$ 64,5 bilhões – e Sete Brasil, mas também de firmas menores, como a Log-In, de logística que repactuou R$ 481 milhões, e Usina Coruripe, de açúcar e álcool, que reestruturou R$ 1,9 bilhão.
“A crise se instalou em velocidade tão grande que a geração de caixa praticamente sumiu antes de as empresas conseguirem fazer ajustes. Sem poder pagar as dívidas, as empresas estão tendo que fazer reestruturações”, afirmou Renato Franco, sócio da Íntegra, uma das pioneiras desse segmento no país, tendo reestruturado a Parmalat em 2006.
O banco Brasil Plural estima que de 60% a 70% das companhias abertas não geram caixa suficiente para pagar sequer os juros de suas dívidas. A reestruturação envolve um diagnóstico da situação financeira da empresa que leva a uma renegociação com bancos e credores, em busca de alongamento e carência. Caso não dê certo, o caminho é partir para recuperações extrajudiciais ou judiciais.
“Embora já haja alguma expectativa de reação econômica, isso ainda não chegou aos balanços das empresas. O que houve foi uma estabilização em um ponto muito baixo. Os juros continuam altos, o custo das empresas está entre 18% a 20% ao ano. Isso gera destruição de geração de caixa e vai demorar para melhorar”, disse Ricardo Carvalho, chefe de Ratings Corporativos da Fitch.
Bancos independentes e consultorias estrangeiros como Moelis, PJT, Rothschild e FTI Consulting vêm explorando com mais força esses serviços no Brasil, sobretudo quando bonds integram as dívidas. Estima-se que só a Moelis – que assumiu casos como Oi, Coruripe, Log-In e Tonon – já atuou na recuperação de mais de US$ 20 bilhões desde que chegou ao Brasil, em 2014.
Novos players
Mas a crise da dívida tem chamado a atenção de bancos que não atuavam no segmento. São instituições que viram encolher suas receitas com assessoria de fusões e aquisições – cujo número de transações caiu 28% no primeiro semestre, segundo a PwC – justamente por causa da crise e buscam recuperá-las por meio desse segmento. O americano JP Morgan é um dos novos entrantes, assessorando a Samarco na reestruturação de dívida líquida de R$ 13,1 bilhões.
O Brasil Plural investe no segmento: criou a área de special situations há três anos e tratou de 15 casos que somam dívida bruta de R$ 25 bilhões.
“Não somos um banco de crédito. Não temos qualquer conflito de interesse para fazer reestruturações, já que não somos credores das empresas”, afirmou o sócio Warley Pimentel, que atua como presidente do Grupo Colombo, rede de vestuário masculino que contratou o banco para reestruturar dívida de R$ 1,5 bilhão. Hoje, o segmento é bastante relevante para o banco.
O Brasil Plural quer aumentar a equipe especializada nessa área de 12 para 18 funcionários este ano; no futuro próximo, o objetivo é dobrar o número. Em cada reestruturação, o banco contrata especialistas externos, como advogados e consultores.
Os bancos credores se prepararam para fazer frente à deterioração das finanças corporativas, tornando improvável um abalo ao sistema, segundo Alcir Freitas, analista da agência Moody’s. Segundo a agência, nos bancos privados, as provisões contra calotes equivalem a 180% dos créditos problemáticos, contra 150% em 2013.
Receita extra
Os bancos têm sido mais atuantes na venda dos chamados “créditos podres”, carteiras em atraso cuja chance de recuperação é considerada cara por ser mais improvável. Além disso, é uma forma de gerar receita extra num momento de menor concessão de crédito.
Os sócios da KPMG Brasil Fernando Omori e Fábio Barbosa estimam que o volume vendido pode chegar a até R$ 30 bilhões este ano, 15% mais que os R$ 26 bilhões do ano passado. No começo da década, o mercado era de R$ 6 bilhões; o potencial é de atingir R$ 50 bilhões em 2020, disse Alexandre Nobre, da RCB Investimentos, que compra e recupera carteiras.
“O crescimento vai depender de os bancos adotarem uma estratégia de colocar ao menos 25% ou 30% de sua carteira no mercado”, afirmou Nobre.
Firmas como a RCB pagam entre 2% e 5% do valor de face dos créditos podres.
“O mercado está mais movimentado, estamos crescendo 26% ao ano. Mas, por causa da crise, ficou muito mais difícil recuperar o crédito. Não existe mais devedor que não paga porque não quer. Isso é 1%. As pessoas não estão conseguindo pagar”, contou Rodrigo Carvalho, diretor de Operações da Paschoalotto, que presta serviço de recuperação de crédito aos principais bancos e tem a Gávea Investimentos entre os sócios.
A crise da dívida corporativa está levando à ampliação do sofisticado mercado de fundos de investimentos cuja rentabilidade está ligada a recebíveis inadimplentes. O patrimônio dos Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FDICs) com foco em crédito inadimplente saltou 136% em dois anos, para R$ 4,4 bilhões, segundo levantamento da consultoria Uqbar. Os maiores gestores são o Banco Merrill Lynch (patrimônio de R$ 1,74 bi) e a Península (R$ 513 milhões).
“O segmento cresce tão fortemente que vem levantando a indústria de FIDCs como um todo” , disse Carlos Augusto Lopes, sócio da Uqbar.
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