Eficiência do Estado e incentivos corretos para que a população possa encontrar empregos sem que seja abandonada por garantias sociais. Essa foi a receita do Plano Hartz que, há pouco mais de uma década, mudaria o sistema trabalhista da Alemanha. Vivendo uma de suas piores crises no fim dos anos 90, o país europeu passou a ser considerada como a “Velha Senhora Doente” do continente. A resposta veio em uma ampla reforma de sua economia, que incluiu mudanças nas regras trabalhistas. Hoje, a Alemanha tem uma das menores taxas de desemprego do mundo.
Ao jornal “O Estado de S. Paulo”, o alemão Daniel Samaan, economista sênior da Organização Internacional do Trabalho (OIT), avaliou o impacto do Plano Hartz. Ainda que admita que dificilmente o modelo possa ser simplesmente replicado em outra economia, ele aponta que a “eficiência do Estado é algo que precisa ser olhado sempre”. Além disso, ter a “estrutura correta de incentivos estabelecida” também pode ser decisivo. A seguir, principais trechos da entrevista.
LEIA MAIS: França privilegiou acordos coletivos na relação entre funcionários e empresas
Como foi construído o Plano Hartz?
Foi um pacote enorme. Não foi uma só lei. Mas uma estratégia completa de lidar com as leis sociais da Alemanha. Outra coisa que precisa ser entendida é que, enquanto o Plano Hartz era debatido, o ex-chanceler Gerhard Schroeder, também levava adiante seu plano Agenda 2010 para a Alemanha. Isso incluía reformas nos planos de saúde, na aposentadoria, nos seguros. Tudo foi uma grande transformação e o Plano Hartz foi, no fundo, o pilar trabalhista dessa mudança no país. Mais tarde, quando olhamos os impactos dessa lei, temos de levar em conta esse contexto maior. Muita coisa mudou ao mesmo tempo.
E como isso foi aprovado?
O Plano Hartz foi dividido em quatro pilares. Cada trecho deles foi aprovado no Parlamento em diferentes projetos de lei. A reforma era tão grande que foram necessárias quatro leis separadas. Isso tudo começou em 2002 e a cada tantos meses foram aprovados o Hartz 1, Hartz 2, Hartz 3 e, finalmente, o Hartz 4.
Quais foram as principais mudanças?
No primeiro pilar, a lei tratava de padrões trabalhistas não convencionais. Isso significa contratos não permanentes, trabalhadores de curto prazo, empregados que eram contratados por agências e terceirizados para empresas. O que ocorreu é que a lei passou a permitir que esses contratos fossem simplificados. Antes, a lei era muito estrita. Se você quisesse empregar uma pessoa, teria basicamente de ser um contrato permanente. Isso foi facilitado e os contratos temporários foram acelerados. Mas, ao mesmo tempo, ficou estabelecido que os contratados teriam remuneração igual à dos empregados permanentes e teriam o mesmo tratamento dentro da empresa. Os mesmos salários e os mesmos benefícios teriam de ser dados. Outro aspecto importante dessa primeira fase é que ficou claro que empregadores, sindicatos e o governo trabalharam juntos para chegar a um acordo.
E como essa coordenação teve um impacto positivo?
Ela evitou, por exemplo, que os empresários usassem a lei para substituir trabalhadores permanentes por trabalhadores temporários, com salários mais baixos e sem benefícios sociais. Peter Hartz, que dá o nome ao plano, veio do setor privado - da Volkswagen - e liderou a comissão que avaliou a reforma. Mas havia uma comissão inteira, com as grandes empresas e sindicatos. Além disso, ele teve seu passado relacionado com sindicatos. O que garantiu o resultado foi o diálogo social.
E como esse diálogo social foi aplicado?
O segundo Plano Hartz lidou com o que chamamos de “miniempregos”. Esses são os empregos para pessoas que trabalham menos de 15 horas por semana. Estudantes, aposentados ou alguém em busca de uma renda extra. Como o sistema de proteção social na Alemanha era muito oneroso, toda vez que contratasse alguém a empresa era obrigada a fazer contribuições importantes ao sistema. Em muitos casos, a empresa chegava à conclusão de que não valia a pena economicamente contratar alguém nessas condições. O Plano Hartz 2 encarou essa realidade, dando mais viabilidade para esses empregos e é prova desse diálogo social capaz de rever as regras.
Considera-se que o papel do Estado e pagamentos de seguros-desemprego também passaram por mudanças profundas. Como ocorreu isso?
Sim, esse foi o Hartz 3. A ideia básica foi a criação de uma agência federal de contratação de funcionários e algumas no nível comunitário. Antes, quem buscava um emprego teria de lidar com diferentes agências. Essa estrutura também foi simplificada. Mas, acima de tudo, o sistema de contratação teve de se tornar também mais eficiente. Hoje, essa agência é quem registra o desempregado e o ajuda a procurar um trabalho. Esse sistema é muito mais eficiente. Antes, uma pessoa desempregada recebia seguro-desemprego de uma agência e treinamento de outra. Para completar, havia uma terceira agência que colocava a pessoa em contato com um futuro empregador. Descobrimos que ajudar as pessoas a achar emprego de forma eficiente é algo que pode contribuir muito para o mercado de trabalho.
Mas também houve contestação em relação aos cortes dos benefícios para desempregados.
Esse foi o foco da Hartz 4, certamente a parte mais problemática da aprovação de todo o plano. O principal impacto dessa aprovação foi reunir em um só pagamento os diferentes benefícios que as pessoas recebiam. Antes, existiam diferentes tipos de seguro-desemprego. Ao final, não era fácil determinar se uma pessoa precisava de todo aquele dinheiro, já que os critérios eram diferentes. Isso foi simplificado. Mas o período em que uma pessoa passou a receber o seguro também foi encurtado. A lei anterior previa que, por até 24 meses, uma pessoa receberia seguros bastante generosos. Hoje, isso foi reduzido para 12 meses. Pode-se dizer que os benefícios continuam a ser relativamente adequados. Mas, depois disso, os valores são significativamente reduzidos se você não voltar ao mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, as exigências para que essas pessoas recebam esses benefícios ficaram mais rígidas.
Quais são as novas exigências?
O desempregado precisa provar que está efetivamente procurando trabalho e reportar isso à agência. Outra mudança é a consideração de seu patrimônio. Antes, a lei não previa uma análise de qual era o patrimônio do desempregado. Apenas o prazo que ela estava sem trabalho. Agora, após os 12 meses iniciais, esse corte pode ser mais profundo se ficar provado que sua situação econômica é confortável. Essa parte do plano colocou pressão sobre o desemprego de longo prazo.
Com tudo isso implementado, qual foi o impacto da reforma?
A meu ver, o pacote completo teve um efeito positivo. Não foi um impacto mágico responsável por mudar tudo da noite para o dia. Existem riscos e pode empobrecer uma parte da população. Mas, para um país que tinha um sistema de proteção social inflado, foi correto investigar quem estava de fato usando o sistema por falta de alternativa. A reforma não foi perfeita. Mas foi o remédio certo para a situação que a Alemanha enfrentava. Isso não quer dizer que não haja um debate. A maioria dos economistas e empresas pensa que a Alemanha se beneficiou muito da reforma. Mas uma parte importante da população acredita que o Hartz 4, com cortes de benefícios, resultou em uma pauperização dos mais vulneráveis, marginalizando aqueles que não tinham capacidade de se reciclar por meio de treinamento. Mas, claro, temos também de lembrar que no fim dos anos 90, a situação do desemprego era muito complicada e hoje vemos o oposto na situação do mercado de trabalho.
Existe alguma lição que países emergentes, como o Brasil, podem tirar do Plano Hartz?
Numa reforma como essa, há elementos que merecem ser considerados. Eficiência do Estado é algo que precisa ser olhado, além da estrutura correta de incentivos. Na Alemanha, dizemos que o Estado precisa ajudar, mas também pressionar os desempregados. O que o plano não tem resposta é para o trabalho informal. No Brasil, há uma alta taxa de emprego informal. Isso você não vai resolver com um Plano Hartz. Esse modelo é para os que já estão no sistema.
França privilegiou acordos coletivos na relação entre funcionários e empresas
O Brasil ainda discute mudanças na legislação trabalhista enquanto outros países já colhem os frutos de suas reformas. Na Alemanha, após a já consolidada reforma iniciada em 2003, a taxa de desemprego, que estava em 10% antes das mudanças, caiu consideravelmente, mas a redução do desemprego no longo prazo ficou aquém do esperado, segundo o pesquisador da Organização Internacional do Trabalho, Daniel Samaan.
Bem mais recente, a reforma na França, que começou a valer em agosto, privilegiou, assim como o governo brasileiro deseja, os acordos coletivos na relação entre funcionários e empresas. A reforma também determinou que as jornadas de trabalho semanais podem ter até 48 horas, período que ainda pode ser alterado pela negociação.
Para o pesquisador da Universidade de Paris Nicolas Chenevoy, as negociações coletivas são mais eficientes em determinar as relações de trabalho diante das mudanças tecnológicas que afetam o mercado. “O problema hoje é adaptar o marco jurídico à mesma velocidade que as transformações introduziram ao mercado frente às novas tecnologias”, disse. Segundo ele, a nova legislação beneficia os dois lados: dá proteção aos trabalhadores e assegura as empresas.
Nos dois casos, as mudanças causaram polêmica. Mas Chenevoy ressaltou que, apesar das reações na França, as regras aprovadas cumprem com a ordem pública e social. Segundo ele, em dois anos todos os trabalhadores do país estarão adaptados à nova legislação.
Já Samaan ressalta que reformas trabalhistas devem ser implementadas com cuidado e não podem ser uma resposta para crises econômicas, mas são tentativas de resolver problemas estruturais do mercado de trabalho. “As reformas trabalhistas não evitam crises e desemprego, mas podem ajudar a mitigar seus efeitos negativos, como trabalho de curto prazo e maior flexibilização nas jornadas.”
Samaan lembrou que a Alemanha tem uma longa história de diálogo com os trabalhadores e seus representantes e apontou que, antes das reformas, o país sofria com uma taxa de desemprego de quase 10%.
Segundo ele, quando se busca uma reforma desse tipo, ela deve abranger vários aspectos conjuntamente, mas tem de ser desenvolvida e implementada com muito cuidado, pois o mercado de trabalho está no centro da economia e afeta a produtividade, distribuição de renda e demanda agregada, além das dinâmicas sociais. Samaan diz que o mercado de trabalho alemão foi beneficiado por outros fatores nos últimos anos, além das reformas. A economia como um todo cresceu em um ritmo forte e a demanda externa ajudou.
Governo pressiona STF a mudar Marco Civil da Internet e big techs temem retrocessos na liberdade de expressão
Clã Bolsonaro conta com retaliações de Argentina e EUA para enfraquecer Moraes
Yamandú Orsi, de centro-esquerda, é o novo presidente do Uruguai
Por que Trump não pode se candidatar novamente à presidência – e Lula pode
Reforma tributária promete simplificar impostos, mas Congresso tem nós a desatar
Índia cresce mais que a China: será a nova locomotiva do mundo?
Lula quer resgatar velha Petrobras para tocar projetos de interesse do governo
O que esperar do futuro da Petrobras nas mãos da nova presidente; ouça o podcast