Proposta em tramitação proíbe o bloqueio do WhatsApp.| Foto: Henry Milleo/Gazeta do Povo

Baixar uma música ilegalmente, constranger um usuário de opinião divergente em algum fórum de discussão ou usar a senha do colega de trabalho podem parecer atos inofensivos, sem muitas implicações reais, mas isso pode estar prestes a mudar no Brasil. A Câmara dos Deputados deve começar em breve a discutir uma série de propostas e de projetos de lei – que tramitarão com prioridade – capazes de mudar a forma como muitos utilizam a internet – entenda o que pode mudar.

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Mas nem só de pequenos delitos do dia a dia trata o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Crimes Cibernéticos, aprovado no início de maio. Crimes de injúria, calúnia e difamação ou o acesso indevido a informações confidenciais, de órgãos de segurança ou jurídicos, por exemplo, podem passar a ficar sob responsabilidade da Polícia Federal (PF) e ter punições mais severas, céleres e frequentes. Seria o fim da impunidade no mundo virtual.

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Pela proposta, quem descumprir regras deverá receber penas diferentes: acessar o e-mail que alguém deixou aberto pode levar ao pagamento de cesta básica ou prestação de serviço comunitário. Já quem causar prejuízo a pessoas, empresas ou ao poder público adulterando dados pode ser detido por até quatro anos.

Dos seis projetos de lei propostos pelos deputados (veja todos), um é especialmente polêmico: o que autoriza a Justiça a determinar o bloqueio de sites e aplicativos dedicados à veiculação de conteúdo considerado ilegal.

De um lado, estão entidades vinculadas à defesa dos direitos autorais e da propriedade intelectual, que veem a proposta como uma maneira de coibir a pirataria na internet. Já o grupo que reúne ativistas na rede argumenta que o texto incita a censura à liberdade de expressão dos usuários.

Para valer, o relatório final do deputado Espiridião Amin (PP-SC) ainda deverá tramitar na Câmara – o cenário, no entanto, já se desenha: vem muita discussão acalorada pela frente.

Bloqueio do Whatsapp

Nos pormenores, o projeto de lei estabelece que juízes poderão determinar o bloqueio do acesso a sites e aplicativos hospedados fora do país, que não tenham representação no Brasil e que sejam dedicados à prática de crimes puníveis com pena mínima de dois anos de reclusão. Esse é considerado um limbo jurídico – serviços na internet hospedados no Brasil ou com representação local já são afetados pelo Marco Civil.

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“Com isso, pretendemos punir quadrilhas internacionais que praticam crimes relacionados aos direitos autorais, ao tráfico de drogas e à pedofilia. A internet necessita de uma cobertura legal. Ao não ter uma legislação, o crime se beneficia, e o Judiciário age na desproporcionalidade, como aconteceu nas vezes em que houve o bloqueio do WhatsApp”, argumenta o deputado Sandro Alex (PSD-PR), um dos sub-relatores da CPI, que propôs um adendo ao relatório pouco antes de ser votado: não está permitido o bloqueio de sites e aplicativos de mensagens instantâneas.

Em carta-conjunta em apoio ao trabalho da CPI, instituições como a Associação Brasileira de Direito Autoral (ABDA) e o Sindicato da Indústria Audiovisual (Sicav) afirmam que o projeto de lei vai ao encontro das necessidades da economia brasileira, uma vez que garante “o bloqueio de sites cujas atividades se limitem a explorar comercial e ilegalmente o fruto do trabalho intelectual alheio”.

As entidades do setor audiovisual também foram beneficiadas por outro projeto apresentado: o que estabelece que os provedores de internet retirem da rede, em até 48 horas, e sem necessidade de nova decisão judicial, imagens, vídeos e quaisquer conteúdos iguais a outros que já tiveram a retirada determinada pela Justiça – outro ponto polêmico do relatório.

“Sem a necessidade de ordem judicial, há o risco de que conteúdos que de fato não são idênticos sejam censurados”, critica a deputada Alice Portugal (PCdoB-BA), que, ao lado de outros cinco parlamentares, votou contra o relatório.

O que pode ser alterado

Com o objetivo de reforçar o combate à prática de crimes virtuais e seus efeitos, a CPI dos Crimes Cibernéticos fez uma série de propostas que podem afetar todos os que usam a internet

Para o usuário

– Nada de clicar “aceitar” sem ao menos ler os termos de uso em um site: um dos projetos de lei prevê a punição de quem descumprir mesmo regras simples, como copiar trechos de uma página sem dar o devido crédito.

– Ligar do celular de alguém ou acessar uma rede wi-fi sem autorização podem passar a ser práticas penalizadas em todo o território nacional.

– Decisões judiciais tomadas em um município já levaram ao bloqueio de aplicativos em todo o Brasil. Com o novo projeto, o bloqueio continua previsto, mas não deve mais afetar aplicativos de mensagens instantâneas, como o WhatsApp.

Para policiais, criminosos e quadrilhas internacionais

– A Polícia Federal passaria a atuar em mais casos de crimes eletrônicos – não só quando envolve pornografia infantil ou discriminação, como hoje –, tirando as investigações da alçada estadual.

– Quem for enquadrado em crimes cibernéticos pode ser punido não somente com prisão, mas também com o confisco de valores e bens.

– Entrar em um computador alheio, abrir pastas, olhar fotos e ler arquivos sem modificar nada não é uma prática punível pela atual legislação, mas pode passar a ser.

Para empresas de tecnologia

– Imagens, vídeos e quaisquer outros formatos de conteúdos difamatórios que tiveram a retirada determinada pela Justiça precisarão ser imediatamente removidos de sites como Google, Facebook e Twitter, mesmo se ressurgirem, sem necessidade de nova decisão judicial.

– Provedores de internet hospedados no exterior ou que não tenham representação oficial no Brasil podem ser obrigados pela Justiça a barrar o acesso a aplicativos e sites com conteúdo ilegal.

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As seis sugestões

Punir o uso indevido da internet fere o princípio da liberdade na rede ou leva segurança a um ambiente sem lei? E o que (ou quem) define quando o uso é ou não indevido? A proposta de punir desde atos corriqueiros contra a propriedade intelectual até conteúdos que atentam contra a vida em um mesmo relatório divide especialistas. Confira as propostas da CPI dos Crimes Cibernéticos e o que alguns de seus críticos e apoiadores pensam a respeito.

Um dos mais polêmicos projetos estabelece a possibilidade de provedores de internet serem obrigados pela Justiça a barrar o acesso a aplicativos e sites que veiculem conteúdo ilegal – desde que sejam hospedados no Exterior ou não tenham representação oficial no Brasil. O texto proíbe o bloqueio de sites e aplicativos de mensagens instantâneas, como o WhatsApp.

Outro projeto de lei prevê que os provedores de internet retirem da rede, em até 48 horas e sem necessidade de nova decisão judicial, imagens, vídeos e quaisquer conteúdos iguais a outros que já tiveram a retirada determinada pela Justiça. Pelo texto, bastará uma notificação do interessado para que o conteúdo seja retirado.

O relatório da CPI inclui também projeto que amplia o crime de invasão de dispositivo informático (computador ou celular), já previsto no Código Penal. Pelo projeto, a invasão de qualquer sistema informatizado, com ou sem vantagem pessoal, passará a ser crime. Atualmente, o Código Penal considera crime invadir dispositivo informático apenas se ficar comprovado o objetivo de obter, adulterar ou destruir dado ou informações sem autorização do dono do dispositivo. Para o deputado Leo de Brito (PT-AC), o projeto penaliza os chamados “hackers do bem”, que fazem invasão em sistemas para testar a sua vulnerabilidade.

Para subsidiar as atividades da polícia judiciária, os deputados sugerem a criação de uma lei para destinar os recursos de um fundo bilionário voltado atualmente à fiscalização das telecomunicações. A ideia é usar até 10% do Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel), que advém das taxas de fiscalização cobradas pela Anatel de parte dos valores pagos por empresas que querem operar no Brasil e de multas aplicadas pela agência.

Outro dos projetos de lei é a inclusão dos crimes praticados por meio de um computador ou contra um desses aparelhos sobre a esfera de atuação da Polícia Federal. Para deputados, a alteração deve ser feita por não haver norma que defina de qual polícia é a competência para investigar suspeitas de crimes cibernéticos.

O relatório sugere que pessoas enquadradas em crimes cibernéticos devam ser punidas com prisão e com o confisco de valores e bens. A medida provocaria a “asfixia econômica de certos crimes”, impedindo que o mesmo instrumento fosse novamente utilizado para práticas ilícitas.

Acessos restritos e censura

Para Fabro Steibel, diretor-executivo do Intituto de Tecnologia & Sociedade do Rio de Janeiro (ITSrio.org), as propostas da CPI dos Crimes Cibernéticos ferem o princípio que rege a internet, que é o da liberdade, e são uma “amostra grátis do que está por vir”: na opinião dele, uma série de bloqueios de páginas e aplicativos, restrições de acesso à internet e censura à liberdade de expressão.

“A internet tem de ser aberta. Você pode criminalizar práticas, conteúdos e autores, mas não a internet. Não há sentido, em uma metáfora, bloquear todos os caminhões dos Correios porque ali no meio há uma carta que tem um crime. A internet é apenas um meio. É desproporcional, do ponto de vista do Marco Civil, comprometer o conjunto de pessoas que fazem o uso de um aplicativo de maneira legal só porque alguns não fazem”, defende Steibel.

Membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), Demi Getschko argumenta que retirar um site do ar devido à prática de um crime não irá coibir o criminoso – poderia, inclusive, prejudicar a investigação, uma vez que se excluirá um meio para se chegar até o autor do delito.

Além disso, na visão de Getschko, não existe a necessidade de uma lei específica para crimes cibernéticos.

“Crimes são crimes, não importa onde ocorram. Meu medo em relação a essa discussão é de que ela seja pretexto para garantir caminhos curtos para se tirar do ar tudo aquilo o que se considerar violação de propriedade intelectual, o que pode dar margem para muitas interpretações. Não está claramente dito, mas é uma hipótese sobre o que está por trás de todo este processo”, discute o membro do CGI.br.

A rede não pode continuar sem lei

Para o deputado Sandro Alex (PSD-PR), sub-relator da CPI, as críticas em relação aos projetos vêm de grupos que pretendem deixar a internet “longe das regras”.

“Só que a rede não pode continuar sendo um território sem lei. E o mundo está caminhando nesse sentido. O que pretendemos aprovar no Brasil não tem nada de parecido com o que ocorre na Coreia do Norte ou na Arábia Saudita, como os opositores têm dito. Mas com o que rege a internet em países europeus, de reconhecida democracia”, afirma o deputado.