Um homem no programa de rádio fala sobre como é a sensação de se assumir como gay para sua família.
O som de sua voz entra pelo canal auditivo do ouvinte e faz vibrar a cavidade em forma de caracol de sua cóclea. Os sons são traduzidos em impulsos elétricos, que disparam pelos seus nervos rumo ao córtex auditivo. Centros de processamento de linguagem começam a analisar a história procurando por sílabas, palavras, ritmo e sintaxe. E, de algum modo, eles conseguem decifrar o que tudo isso quer dizer.
VÍDEO: Imagens mostram os resultados da pesquisa
Dentro da máquina de ressonância magnética, o cérebro da ouvinte está aceso, indicando a atividade cerebral.
Pode ser verdade que o processamento e produção da linguagem se deem no lado esquerdo do cérebro, mas a procura por sentido parece exigir esforços do órgão inteiro
Pela primeira vez, pesquisadores da Universidade da Califórnia em Berkeley foram capazes de mapear essa atividade, determinando em que partes do cérebro certos conceitos – família, números, textura e toque – são processados e compreendidos. O resultado de seu trabalho, que foi publicado em abril no periódico Nature, é um tipo inteiramente novo de ferramenta para os neurocientistas. O pesquisador Jack Gallant, professor de psicologia da Berkeley, o chamou de um “atlas semântico” – um atlas de ideias.
Gallant tem a esperança de que os neurocientistas possam usá-lo do mesmo modo como um navegador usa um globo terrestre. Sozinho, ele não pode lhes dizer nada sobre como o cérebro funciona, mas pode servir de guia para sua exploração. “É uma ferramenta que você pode usar para responder outras questões”, ele afirmou.
Outros pesquisadores, bem como também qualquer um que tenha interesse, logo poderão conferir o atlas online (há uma versão preliminar já no ar, mas ela só mostra os resultados de um único mapeamento cerebral e exige um computador muito rápido). A base desse atlas é o mapeamento dos cérebros de sete alunos de pós-graduação e pós-doutorado da Berkeley, feito enquanto eles escutavam duas horas de histórias do programa de rádio “The Moth Radio Hour” – histórias sobre amor, fé, abuso, arrependimento, identidade de gênero, beisebol e dançarinas exóticas, entre outras coisas.
Metodologia
Gallant e seus colegas cruzaram os picos de atividade em cada cérebro com as palavras sendo pronunciadas e descobriram que palavras associadas a certas ideias com relações entre si tendiam a suscitar respostas semelhantes. Por exemplo, uma área que acendia em resposta à palavra “grávida” era adjacente a outra estimulada por “casa”, sugerindo que havia uma noção mais ampla – família – concentrada ali. O software de processamento de linguagem natural permitiu que os pesquisadores traduzissem as histórias em conceitos de grupos, para então mapear esses conceitos em cada um dos sete cérebros. O mais intrigante foi que todos os sete mapas eram surpreendentemente semelhantes.
Talvez, se o estudo mapeasse os conceitos no cérebro de um artista brasileiro ou de uma criança japonesa, os resultados fossem diferentes. Por enquanto, os resultados são surpreendentemente semelhantes
Depois, a equipe de Gallant utilizou uma ferramenta estatística que eles mesmos inventaram para identificar áreas funcionais que todos os alunos tinham em comum (para conseguir uma média mais sofisticada) e criar um modelo mais geral. Quando esse modelo foi testado numa história que nenhum dos alunos testados havia ouvido antes, ele revelou uma grande eficácia em prever como eles responderiam.
Com apenas sete participantes, esse estudo é ainda muito menor do que aquilo que costuma ser considerado como confiável para a neurociência (ou para qualquer outra área científica). Tradicionalmente, uma amostragem maior indica um resultado mais preciso: uma pesquisa com 100 mil pessoas, no geral, é mais confiável do que uma que interrogue apenas 10, porque há menores chances de variações aleatórias e erros que distorçam o resultado médio. Uma amostragem maior também tem mais chances de representar a humanidade como um todo com maior precisão.
Mas, conforme a amostragem vai crescendo, vai se tornando mais difícil reunir informações dos participantes – realizar esse experimento em 700 ou até mesmo 70 participantes em vez de sete exigiria uma quantidade extraordinária de tempo e limitaria o número de histórias e conceitos que Gallant é capaz de examinar. Em vez disso, ele optou por usar apenas alguns participantes para desenvolver seu mapa modelo do cérebro e então testou esse modelo com uma história nova para ver se ele funcionava. Ele defende que esse processo de comprovar a precisão do modelo é igualmente adequado para testar a validade dos resultados. E ele continuará aumentando o tamanho da amostragem também, acrescentando os resultados de mapeamentos futuros para refinar ainda mais o seu atlas.
Enigmas
Por enquanto, não é necessário mais do que um breve olhar de relance no atlas para ver que o sistema semântico do cérebro é ainda uma selva inexplorada. O significado não é processado em centros específicos, mas sim em redes vastas e complexas. Conceitos sociais, por exemplo, codificados em cor vermelha no atlas, estão distribuídos por ambos os hemisférios do cérebro.
Essa descoberta foi meio que uma surpresa para os neurocientistas, que mantinham a crença tradicional de que a linguagem era uma ocupação do lado esquerdo do cérebro – o lado que lida com lógica, computação e fatos. Porém, a maioria dos estudos em neurociência estuda reações a palavras e sons específicos, não a conceitos amplos.
Pode ser verdade que o processamento e produção da linguagem se deem no lado esquerdo do cérebro, diz Gallant, mas a procura por sentido parece exigir esforços do cérebro inteiro.
“Isso não significa que essa localização seja falsa”, ele afirmou. “Só quer dizer que o cérebro é muito, muito complicado”.
Gallant acredita que várias partes do cérebro são mobilizadas para analisar ideias. Por exemplo, uma menção à “família” pode estimular memórias da família do próprio ouvinte, vindas de um dado setor, e um ideal abstrato de família, de outro.
“O cérebro é um órgão eficaz, por isso pode-se presumir que temos tantas representações diferentes porque elas são necessárias”, afirma Gallant. A dúvida que fica é: por quê?
Esse é só mais um dos enigmas ainda não resolvidos provocados pelo estudo de Gallant. Outro é o motivo pelo qual os sete mapas gerados a partir dos sete participantes serem tão parecidos. Pode ser pelo fato de que os participantes em si eram semelhantes – todos eles alunos anglófonos e bem-sucedidos da mesma universidade. Talvez, se Gallant mapeasse os conceitos no cérebro de um artista brasileiro ou de uma criança japonesa, os resultados fossem diferentes. Ou talvez eles sejam parecidos com os sete mapas iniciais, o que indicaria que os sistemas semânticos de cérebros humanos diversos partilham de um plano arquitetônico fundamental – do mesmo modo como apartamentos de um mesmo prédio têm a mesma planta, mas podem ser decorados utilizando variedades imensamente diferentes de mobília.
Essas dúvidas são estudos futuros só esperando para acontecer, segundo Gallant. E agora ele tem um mapa para realizá-los.
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