A partir deste ano, Goiás começará a terceirizar a administração de escolas estaduais que passarão a ser geridas por organizações sociais (OS). O modelo já é aplicado no sistema de saúde do estado. A implementação em escolas é, segundo o próprio governo, inédita no Brasil. A questão, no entanto, gera polêmica. Professores e alunos são contra o modelo de gestão e pedem mais diálogo. Já o governo acredita que o setor privado poderá trazer mais eficiência ao sistema de ensino. No estado, 27 escolas estão ocupadas por estudantes em protesto contra as OS.
Durante os três dias que esteve em Goiás, de 18 a 20 de janeiro, a reportagem da Agência Brasil visitou ocupações, conversou com pais e com estudantes. Poucos, até mesmo dentro das ocupações, sabiam explicar o modelo. A professora Ana Cláudia Siqueira descobriu, no ato da matrícula da filha no Colégio Estadual Antensina Santana, em Anápolis, que a escola está na lista para começar a ser administrada por OS ainda neste ano. Ela foi informada por estudantes que ocupavam o colégio.
Na parede da cantina do Colégio Estadual Lyceu de Goiânia, uma cartolina mostra os horários das refeições para os estudantes que ocupam a escola desde dezembro do ano passado. São quatro: café da manhã, almoço, lanche e jantar. Na última segunda-feira (18), o café que seria servido às 8h30 atrasou duas horas. “Passamos a manhã reunidos com os pais de alunos e alunos que vieram buscar informações na escola”, explica Guilherme*, estudante do ensino médio da escola e um dos primeiros ocupantes do lugar. As aulas começariam na quarta-feira (20) e o clima era de incerteza. Nem os ocupantes nem os pais sabiam o que aconteceria. Horas mais tarde, a secretária de Educação do estado, Raquel Teixeira, anunciaria que o início das aulas seria suspenso nos colégios ocupados.
Tradicional na cidade, o Colégio Lyceu, localizado no centro da capital, foi a terceira escola a ser ocupada por estudantes secundaristas, no dia 11 de dezembro do ano passado. No total, 27 escolas estão ocupadas no estado. A última, o Colégio Estadual Rui Barbosa, foi ocupada na noite de sábado (23), segundo publicações feitas pelos estudantes no Facebook, principal meio de comunicação do movimento.
Os alunos protestam contra o novo modelo de gestão proposto pelo governo, que terceiriza a administração das escolas a entidades filantrópicas, as organizações sociais (OS). Na prática, os repasses públicos passam a ser feitos às entidades, que serão responsáveis pela manutenção das escolas e por garantir melhor desempenho dos estudantes nas avaliações feitas pelo estado. Elas podem inclusive contratar professores e funcionários.
“Não houve diálogo algum. Estamos lutando por melhorias na educação. Estamos cansados de receber migalhas enquanto o dinheiro fica no bolso dos grandes”, diz Guilherme, de 16 anos. Os estudantes pedem que o edital de chamamento das OS, publicado no final do ano passado, seja revogado e que o governo discuta o modelo com a comunidade escolar. “Em São Paulo, as ocupações deram certo, o que temos a perder? Eles acreditaram. Vamos fazer isso porque acreditamos que vai dar certo”, acrescenta.
Dia a dia
O movimento começou no dia 9 de dezembro com a ocupação, em Goiânia, do Colégio Estadual José Carlos de Almeida (JCA), inativo desde 2014. “Eu estudava no JCA quando ele foi fechado, primeiro foi a desculpa de uma reforma, depois de que não havia alunos suficientes para manter a escola funcionando. Eu estava viajando de férias, quando cheguei recebi a notícia de que a escola tinha fechado e que eu seria transferida para o Lyceu”, conta Narryra, 16 anos, uma das ocupantes. A reabertura do JCA também está na pauta de reivindicação dos alunos.
No dia em que concedeu entrevista para a Agência Brasil, Narryra visitava a ocupação do Lyceu pela segunda vez. Embora a mãe incentive a participação dela no movimento, o pai acredita que é perigoso e proíbe a filha de frequentar as escolas ocupadas. “Venho só de dia, não posso dormir”. Ao lado de Narryra, Liz, 17 anos, ex-aluna do Lyceu, complementa: “Pais e alunos acham que aqui é só bagunça, não é”. Recém saída do ensino médio, Liz acabava de saber que foi aprovada em psicologia, na Universidade Federal de Goiás (UFG) pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu).
A rotina das ocupações inclui a limpeza da escola, oficinas, aulas públicas e eventos culturais que são divulgados pelo Facebook. As ocupações visitadas não tinham mais de 30 alunos em cada, algumas tinham menos de dez. A alimentação vem de doações da comunidade. Segundo os alunos, artistas locais, professores e pais contribuem. Nas portas das escolas, vários cartazes pedem recuo na implantação do modelo das OS e enfatizam: “Educação não é mercadoria”.
No Colégio Estadual Bandeirante, estudantes aproveitaram para mostrar como queriam a educação. Nos banheiros, colocaram cartazes que asseguravam o uso por transexuais, conforme o gênero com o qual se identificam.
Não estamos tratando de uma mudança em uma escola, estamos falando em uma mudança em um sistema, em uma filosofia, isso não pode ser feito sem diálogo”, diz o professor associado do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás (UFG) Tadeu Arrais.
Ele apoia a luta dos estudantes e defende que a universidade tem um papel central nessa discussão, uma vez que é uma das responsáveis pela formação docente. Professores como Arrais têm visitado as ocupações e conversado com estudantes. O Facebook é um dos principais meios de divulgação de informações, tanto dos estudantes quanto de artigos e denúncias de apoiadores.
Modelo goiano
As OS são entidades privadas, sem fins lucrativos. Estão previstas na Lei 9.637/1998 e foram reconhecidas no ano passado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que julgou uma Ação Direta que Inconstitucionalidade (Adin) que questionava a legalidade da atuação das OS.
No modelo goiano, os repasses públicos passam a ser feitos às entidades que são responsáveis pela manutenção das escolas e por garantir melhores desempenhos dos estudantes nas avaliações feitas pelo estado. Elas também ficarão responsáveis pela contratação de professores e funcionários.
“Vai ser uma parceria que vai tirar dos ombros dos diretores e dos professores a tarefa que hoje demanda tanto tempo deles, que é correr atrás de descarga do vaso sanitário que estragou, da infiltração da parece que vai estragar o computador, do vento que levou o teto. Nós queremos criar condições para que o clima escolar seja voltado para o processo de aprendizagem”, diz a secretária de Educação de Goiás, Raquel Teixeira. “Continua o mecanismo de eleição direta para diretor e o conselho escolar continua com autonomia. O conselho tem representantes de pais de alunos e da comunidade escolar. O currículo é o mesmo e quem define é a Seduce [Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esporte]”.
Segundo Raquel, os gastos com educação vão diminuir com a implantação do novo modelo. O edital de chamamento das OS prevê um gasto mínimo de R$ 250 e máximo de R$ 350 por estudante. Atualmente são gastos R$ 388,90. “Um conjunto de fatores leva a [adoção do modelo de gestão por] OS, entre elas, dificuldades de ordem orçamentária e financeira e rigidez de ordem burocrática e administrativa. Hoje, a burocracia instaurada no Poder Público, por conta da Lei de Licitações [Lei 8.666/93], é grande problema porque compromete atuação ágil e eficiente que se espera”, diz o procurador do estado de Goiás Rafael Arruda. Ele atua na Casa Civil acompanhando a implementação dos programas de parceria.
A Seduce divulgou, no próprio site, no dia 6 de janeiro, o edital de chamada das entidades, que foi publicado no Diário Oficial do estado no dia 30 de dezembro de 2015. A abertura de envelopes será feita no dia 15 de fevereiro. O projeto-piloto começará por 23 unidades da Subsecretaria Regional de Anápolis. A intenção é que haja pelo menos mais duas convocações ainda este ano para ampliar o modelo para 200 escolas. A capital, Goiânia, deverá ser incluída na terceira chamada, segundo a secretária de Educação, Raquel Teixeira.
Para o professor Tadeu Arrais, o edital abre brechas para a desvalorização dos professores. Falta ainda transparência e mais esclarecimentos no texto sobre a atuação das OS. “Se lermos o edital, vamos perceber que a permanência ou não de uma OS em uma escola dependerá do desempenho escolar. Como ela não vai interferir no processo pedagógico? É no mínimo estranho”, diz.
O edital estabelece que ano a ano os alunos deverão apresentar melhores resultados nas avaliações do estado. As OS terão que garantir ainda que mais alunos sejam aprovados e que menos estudantes abandonem os estudos.
Ainda de acordo com o edital, as OS podem firmar convênios para ter outras fontes de recursos para investir nas escolas. “Tem uma lista aqui com convênios, mas essa lista não está clara. Qual é o resultado de reembolso de despesas, por exemplo? De que modo eu faço esse convênio? Não está claro. Dizem que o modelo é novo e que vai sendo adequado e construído. É o ‘vou trocar o pneu com o carro andando’, mas com educação não se faz isso”, diz o professor.
Segundo o procurador Rafael Arruda, algumas regras ainda serão regulamentadas. De acordo com ele, pelo edital, uma OS pode usar o espaço da escola para publicidade. Perguntado se uma propaganda da Coca-Cola poderia, por exemplo, ser fixada no muro da escola, ele disse que ainda “tem dúvidas”, mas que isso ainda será objeto de regulamentação.
Outra forma de obtenção de recursos, exemplificada pelo procurador, é a locação do espaço para eventos corporativos fora do horário de funcionamento da escola. A questão pode abrir, no entanto, brecha para que a entidade cobre da própria comunidade o uso do espaço, na avaliação de Arrais. “O edital não fala disso especificamente, mas como a gestão e o espaço serão da OS, imagino que poderá ser utilizado com esse propósito. Difícil pensar em controle”.
Diálogo
Arrais, assim como os estudantes nas ocupações, defende que o edital seja suspenso e melhor debatido com a comunidade. A Seduce diz que não há possibilidade de retroceder no tema, mas que está agendando reuniões com os diretores, professores e estudantes do estado.
Uma das advogadas do movimento das ocupações, Clarissa Machado, da Associação Brasileira dos Advogados do Povo (Abrapo), critica a falta de diálogo do governo com a comunidade escolar. “Temos os primeiros registros de diálogo no dia 21 de dezembro, sendo que as ocupações começaram no dia 9”, diz.
Perguntado pela Agência Brasil, o ministro da Educação, Aloizio Mercadante, não se posicionou em relação à adoção do modelo, mas ressaltou que é preciso dialogar com a comunidade antes de qualquer mudança na educação.
“Temos que ter certa prudência na implantação e na mudança de regime nas escolas públicas. Tivemos recentemente em São Paulo uma tentativa que gerou um posicionamento muito grande”, disse o ministro. “Qualquer mudança estruturante precisa de muito diálogo, muita negociação. O MEC respeita as redes estaduais e municipais, mas é muito importante [o diálogo].”