Entrou em vigor em 27.07.2015 a Lei nº 13.129, que introduziu diversas alterações na Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307/1996). As modificações são orientadas a admitir formalmente a possibilidade de arbitragem de litígios envolvendo a Administração Pública.
Rigorosamente, a maioria esmagadora da doutrina e a jurisprudência já admitiam essa possibilidade. O cabimento da arbitragem depende diretamente da natureza dos direitos e interesses sobre os quais versa o litígio. Admite-se que as partes optem pela arbitragem quando houver disputa sobre direitos patrimoniais disponíveis.
A grande parte dos administrativistas reconhecia que a proclamada indisponibilidade do interesse público não impedia o uso da arbitragem em litígios envolvendo a Administração Pública. Nesse ponto, a controvérsia é meramente terminológica. O interesse público é indisponível numa acepção distinta daquela utilizada a propósito dos direitos patrimoniais disponíveis. Afinal, se a Administração pode contratar, pode vender, pode comprar, alienando bens e assumindo obrigações, isso implica a disposição de direitos patrimoniais. Não se admite é a renúncia à realização dos fins últimos que norteiam a própria existência do Estado.
É inegável que a orientação contrária à arbitragem refletia algumas conveniências da Administração Pública. A remessa do litígio ao Poder Judiciário dificulta a sua solução. O enorme acúmulo de serviço do Judiciário, a especialidade das regras aplicáveis e a complexidade de questões fáticas aumentam a probabilidade de atraso. O particular tem um incentivo adicional a abrir mão de suas pretensões. Afinal, é preferível arcar com um prejuízo de valor determinado do que iniciar um litígio cuja solução será demorada e incerta.
Por outro lado, o Poder Judiciário permanece muito mais sensível à tese da presunção de validade do ato administrativo. Há uma forte tendência a que o juiz rejeite a pretensão do particular se não houver uma ilegalidade muito evidente.
Usando uma imagem vulgar, parece que o relacionamento do juiz com a Administração é como o do árbitro de futebol e a penalidade máxima. Falta fora da área é fácil de apitar, tal como é simples decidir contra o particular. Falta dentro da área tem de ser muito clara para ser apitada. Para muitos juízes, decisão contra a Administração Pública só se houver fratura exposta! Muito pior, há aqueles que nem em caso de tentativa de homicídio decidem contra o Poder Público: acham que a culpa pela fratura é do próprio particular, que deveria ter evitado a chuteira insensível da Administração e permitido o gol ilegal.
Até por isso, admitir formalmente o cabimento da arbitragem para litígios com a Administração Pública não significa uma escolha voluntária. É muito mais uma necessidade para atrair investidores e ampliar a competição no mercado público. Porque os desvios e descalabros da contratação administrativa, as práticas abusivas, as denúncias contínuas de irregularidades acabam desestimulando o setor privado a contratar com a Administração.
A arbitragem apresenta, então, vantagens sobre a jurisdição estatal. A agilidade na avaliação do caso concreto e a especialização permitem uma decisão mais rápida. Por outro lado, a demora do Judiciário não pode ser utilizada como um fator de pressão sobre o particular para concordar com o sacrifício de seus interesses.
O expresso reconhecimento da possibilidade de arbitragem nos litígios da Administração Pública deve ser aplaudido. Mas não pode ser encarado como a solução para todos os males.
A arbitragem tem-se tornado uma espécie de febre no Brasil e a sua utilização vem crescendo de modo marcante. A adesão a essa solução não deve neutralizar as avaliações críticas e a identificação de defeitos e pontos vulneráveis.
Em primeiro lugar, a arbitragem exige árbitros especializados no tema do conflito e que dominem amplamente a área do direito objeto do litígio. É indispensável o conhecimento de direito processual, igualmente. Não é satisfatório o árbitro que não tenha experiência quanto às atividades do mundo real. Logo, é relativamente reduzido o número de pessoas em condições de atuar como árbitros nos litígios de direito administrativo.
A multiplicação das arbitragens em direito administrativo gera um potencial impasse: haverá árbitros assoberbados de processos e haverá árbitros destituídos de conhecimento especializado. Nesse cenário, há o risco de que a arbitragem perca algumas de suas vantagens.
Esse problema envolve uma questão muito mais ampla. O acúmulo de litígios e a multiplicação de processos judiciais ou arbitrais não é resultado de limitações da lei processual, do Poder Judiciário ou da arbitragem. É uma decorrência de falhas de direito material e de práticas violadoras dos valores fundamentais. Se o direito material não for suficiente para disciplinar a conduta intersocial, o sistema jurídico terá falhado. Nunca haverá juízes e árbitros suficientes para julgar todos os litígios que surgirão. O problema fundamental não é a estrutura do Poder Judiciário. Podem ser produzidos tantos novos Códigos de Processo Civil quanto se imaginar. Ou se reduz a litigiosidade da sociedade brasileira ou qualquer outra solução será destinada ao fracasso.
Outro grande problema da arbitragem é a importação de um modelo processual e procedimental típico da common law. Sou totalmente contrário à estruturação da arbitragem, no Brasil, segundo o modelo procedimental anglo-saxão. Tem-se reputado que a audiência é obrigatória, mesmo nos casos em que a controvérsia é exclusivamente de direito ou que a questão de fato pode ser composta por meio de prova documental.
Lembre-se que essa questão se relaciona diretamente com aquilo que pode ser chamado de “mercado da arbitragem”. Há um interesse relevante de profissionais estrangeiros de participar em arbitragens no Brasil. Eu não tenho qualquer oposição a isso e sou muito mais liberal sobre o tema do que a própria OAB. Mas não é razoável que um advogado estrangeiro, que não tenha o menor conhecimento do direito brasileiro, atue como árbitro ou como advogado em arbitragens no Brasil. Isso é muito mais grave no âmbito do direito administrativo, cujas características são muito próprias. Um profissional estrangeiro pode ter participado de centenas de arbitragens fora do Brasil. Isso não significa a sua habilitação para atuar numa arbitragem envolvendo o direito administrativo brasileiro.
Esses são alguns dos problemas despertados pela arbitragem no âmbito do direito administrativo. Há ainda uma série de outra questões, que terão de ser enfrentadas na teoria e na prática. Ser partidário da arbitragem não autoriza ignorar essa realidade.
*Marçal Justen Filho, advogado, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, escreve mensalmente para o Justiça & Direito
** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo