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Os oitocentos anos da Magna Carta foram celebrados em junho de 2015. O documento dispunha sobre direito penal, direito civil, direito comercial, direito tributário. Mas a regra mais conhecida era aquela do item 39: “Nenhum homem livre será capturado ou aprisionado, ou desapropriado dos seus bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou de algum modo lesado, nem nós iremos contra ele, nem enviaremos ninguém contra ele, exceto pelo julgamento legítimo dos seus pares ou segundo a lei da terra”. O dispositivo assegura o direito ao devido processo legal, que se tornou uma garantia fundamental em todas as nações civilizadas.

O direito anglo-saxão nunca reconheceu formalmente um direito administrativo similar ao desenvolvido no direito continental, especialmente na França. Não deixa de ser paradoxal que tenha prevalecido durante muito tempo no direito inglês a concepção de que “The King can do no wrong” (“É impossível o Rei cometer um ilícito”), mesmo após a edição da Magna Carta e a superveniência de outras garantias. O controle jurisdicional dos atos administrativos sempre foi um tema problemático no direito britânico e estadunidense. Ainda o é nos dias de hoje – exceto quando se trata do devido processo legal.

No direito estadunidense, a complexidade da regulação produzida pelas agências administrativas conduziu a Suprema Corte dos EUA a limitar o controle jurisdicional dos atos administrativos. No caso “Chevron” (Chevron U.S.A., Inc. v. NRDC, 467 U.S. 837 [1984]), afirmou-se que o Judiciário não pode substituir por suas próprias construções as interpretações razoáveis realizadas pela agência. Mas, no direito estadunidense, também se reconheceu que as decisões administrativas devem observar um procedimento justo, adequado e equilibrado. O Administrative Procedure Act (APA) estabelece diversas regras sobre o devido processo legal administrativo. Presume-se que a decisão adotada é conforme com o direito somente quando resultar da observância do devido processo legal. Por isso, há controle jurisdicional das decisões administrativas sob esse aspecto, o que envolve o respeito a um processo administrativo que assegure a participação de todos os interessados, o exercício do direito de defesa, o contraditório e o julgamento imparcial. Com algum exagero, pode-se afirmar que os EUA vêm desenvolvendo uma espécie de contencioso administrativo: as decisões administrativas somente podem ser revistas judicialmente em caso de infração ao devido processo legal.

No direito francês, tal como na generalidade dos demais países da Europa continental, é adotada a dualidade de jurisdições. A função jurisdicional é partilhada entre o Poder Judiciário e o contencioso administrativo. O surgimento do litígio na via administrativa acarreta a instauração de um processo jurisdicional-administrativo, com aplicação das garantias processuais de modo amplo.

Portanto, pode-se afirmar que tanto o direito administrativo estadunidense como o direito administrativo europeu continental consagram a garantia do devido processo legal. O espírito da Magna Carta entranha o direito administrativo desses países.

No Brasil, a situação é muito diversa. Lembre-se que, antes da CF/88, o STF chegou a afirmar que a garantia constitucional do devido processo legal se aplicava apenas na via judicial (RE 73296-SP, rel. Min. Djaci Falcão, RDA 111, p. 142). Pressupunha-se que arbitrariedades praticadas pelas autoridades administrativas seriam corrigidas pelo juiz.

A CF/88 expressamente consagrou a garantia do devido processo legal no âmbito da atividade administrativa (art. 5º, incisos LIV e LV). Mas essa garantia não foi aplicada em toda a sua extensão até o presente.

O ponto essencial que não pode ser ignorado é que o instituto do “processo” não incide apenas no âmbito judicial. É evidente que a atividade jurisdicional está estritamente vinculada ao conceito de processo. Não há jurisdição na sua acepção mais própria sem o devido processo legal. Mas daí não se segue que a garantia do devido processo legal se restrinja ao âmbito da atividade jurisdicional.

O exercício de qualquer competência decisória, especialmente de natureza estatal, exige a observância de um processo norteado pelo contraditório, pela ampla defesa e pela imparcialidade. Assim se impõe, em primeiro lugar, como uma decorrência do sistema jurídico de limitação do poder estatal. Numa democracia, nenhum agente estatal é legitimado a exercitar o seu poder de modo arbitrário, sem respeitar lealmente os interesses e os direitos dos particulares envolvidos. É simplesmente um despropósito político e jurídico imaginar que a autoridade administrativa estaria autorizada a decidir arbitrariamente ou que o devido processo somente disciplinaria a atividade decisória jurisdicional.. A jurisdição é também um mecanismo de limitação dos poderes estatais. Mas não é único, nem o último. Num regime democrático, nenhuma decisão estatal pode ignorar o direito de defesa do interessado, nem ser produzida sem prévia oportunidade para a produção de provas ou ser adotada sem a garantia da imparcialidade.

Mas há outra razão para impor a observância do devido processo no âmbito da atividade administrativa. A República exige que as decisões administrativas estatais sejam as mais adequadas e satisfatórias, que reflitam as escolhas mais racionais, que produzam o uso mais adequado para os recursos públicos. A Constituição assegura um direito fundamental à boa administração (na construção de Juarez Freitas). Ora, somente a participação de todos os interessados e a observância de um procedimento fundado no contraditório e na ampla defesa tornam possível a melhor decisão.

No Brasil, no entanto, continua a prevalecer um projeto imperial para a atividade administrativa. Vigora uma concepção tradicional e carismática da legitimação do direito: o exercente do poder político julga-se um sujeito iluminado e investido de capacidade divina de formular as escolhas mais sábias. Decisões fundamentais são adotadas impulsivamente pelo governante, sem observância de um devido processo, nem oportunidade para manifestação prévia dos interessados. Questões controvertidas são solucionadas por agente destituído de um mínimo de imparcialidade, que segue fielmente as determinações da autoridade superior. A Lei Federal do Processo Administrativo (Lei nº 9.784) continua a ser solenemente ignorada no âmbito da própria Administração federal.

A Magna Carta foi outorgada em 15 de junho de 1215. Durante mais de quatrocentos anos, permaneceu como um documento irrelevante. Somente depois da Revolução Gloriosa de 1688 é que as limitações ao poder do Rei britânico adquiriram efetividade.

No Brasil, já se passaram vinte e sete anos desde a Constituição democrática. Não podemos esperar quatrocentos anos para as suas garantias tornarem-se efetivamente respeitadas. A Nação brasileira não sobreviverá tanto tempo sem democracia e respeito ao devido processo legal.

*Marçal Justen Filho, advogado, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, escreve mensalmente para o Justiça & Direito.

** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.

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