Lembro que na Copa de 1970 sofria pela ambiguidade: torcia contra a ditadura de Médici e a escancarada propaganda de Estado via seleção, mas irresistivelmente vibrava com as obras-primas que via na telinha em preto e branco. Coração dividido, por um bom tempo vivi a certeza de que a seleção brasileira era invencível como um herói de tevê. Suas derrotas pareciam contrariar a lógica do mundo.
Quarenta anos se passaram e a ambiguidade se mantém, em outra direção. Sem ditadura, a evocação da "pátria" de Dunga resta apenas ridícula. Assim como há uma misteriosa ironia na força do futebol, quando tentamos pensar nele a fundo como pode um simples jogo de pontapés numa bola mover e comover o mundo do jeito monumental como move e comove? Rios de dinheiro e rios de lágrimas giram em torno dessa missa profana de 90 minutos.
Até a sociologia de boteco sabe que o futebol é mais que um jogo; rituais religiosos, carnavalescos, políticos e sociais se encontram com tanta intensidade nas célebres quatro linhas e nas arquibancadas que esse esporte parece incompreensível à luz fria da razão. Mas quem vive com a luz fria da razão? Entre tantos mistérios, brilha o fato de que o futebol aceita e consagra o erro como parte da vida, e às vezes faz dele uma glória.
E a cada país, uma sentença: a desonesta mão francesa que, nas Eliminatórias, colocou a França na Copa, caiu como uma maldição sobre o time, soterrado de vergonha, como se, numa fábula exemplar, o país do Iluminismo não pudesse conviver com o crime.
Já a clássica mão argentina de Maradona foi ovacionada como a reencarnação de Deus, enquanto o braço comprido de Luís Fabiano fez-se fabuloso e colorido como a natureza do Brasil, um belo gol criado a toque de pandeiro.
As pesquisas mostram que, apesar da monumental máquina da Copa, torcemos mais intensamente para os times locais do que para as seleções, cada vez mais abstratas e distantes. Entre o Estado e a seleção há intermediários demais para o sabor da tribo e o espírito tribal é o verdadeiro motor do futebol.
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