O sucesso mudou pouco este mineiro de Lagoa da Prata, tímido diante das câmeras, mas um brincalhão longe delas. O futebol trouxe a possibilidade de ajudar a família, abriu portas para conhecer novas culturas, proporcionou o conforto que não teve na infância para o filho Júnior, de oito anos. Mas não foi capaz de modificar o jeito simples de Gilberto. Um brasileiro típico que carrega com orgulho o "Silva" no sobrenome e não esquece as raízes.
Esta é a terceira de uma série de matérias especiais do Jornal Nacional sobre os 23 convocados por Dunga para a Copa do Mundo de 2010.
Lembranças de tempos difíceis. De quando via o pai Nízio trabalhar duro cortando cana para sustentar a casa. De quando resolveu colocar a mão na massa aos 14 anos e foi assistente de obra para ajudar na renda familiar. Mas se cada centavo era contado, Gilberto Silva ganhava algo muito mais valioso. Princípios, valores, educação.
"Vejo o meu pai como um herói. É a minha referência de vida, de homem, de pai, de amigo, de conselheiro, de tudo assim. É uma pessoa que sempre batalhou, nunca foi de reclamar de nada da vida mesmo diante das dificuldades. Pelo contrário. Quando a dificuldade aumentava, ele trabalhava ainda mais," disse Gilberto Silva em entrevista ao repórter Tino Marcos, da TV Globo.
Gilberto Silva cresceu em uma pequena vila de trabalhadores em Luciânia, que ficava a seis quilômetros de Lagoa da Prata, cidade do interior de Minas Gerais. O pai trabalhava para uma usina que produzia álcool e açúcar. E a mãe Maria Izabel era dona de casa. Cuidava dos quatro filhos. Beto, como é chamado pela família, é o mais velho. Havia ainda três meninas: Jani, Juscélia e Joelma. A principal alegria era jogar bola.
"O forte lá era a cana. Então era tudo rodeado de canavial. A nossa diversão era a bola e ir chupar cana. Foi uma excelente infância apesar de todas as dificuldades dos meus pais para cuidar de quatro filhos. Mas sempre brinquei, joguei bola na rua," lembra o camisa 8 da seleção, que dividia um quarto com as três irmãs.
"Havia muito espaço para ele brincar, podia correr por aí. Hoje é mais difícil você soltar o filho assim. É muito perigoso, nê. Ele ia para o meio da plantação chupar cana, voltava todo pretinho de carvão. Era assim, era gostoso. Mas nunca deu trabalho. Era um garoto tranqüilo," completa o pai Nízio.
Sr. Nízio também gostava de uma bolinha. E sempre levava Gilberto Silva para as partidas do Luciânia Sport Clube, time amador da cidade que defendeu por mais de 20 anos. Há quem jure de pé junto que era um belo jogador. Marcador implacável. Mas ele tinha uma tática interessante no campo cercado pelo canavial.
"Chutava muita bola com força para o meio da cana. Até eles acharem a bola na plantação eu tomava um fôlego e descansava (risos)," conta.
Gilberto Silva cresceu rápido e logo quis entrar para times amadores da região. Mais alto do que os outros garotos da idade, ele chegou a ser chamado por amigos de "Galo do Campo" por causa das pernas compridas. Mas o apelido não pegou. Era meia, vestia a camisa 10. Gostava de jogar descalço nos campos de terra. E viajava na garupa de caminhão para as partidas do "La Pratinha", equipe que defendia. Para treinar, todos os dias seguia de bicicleta por cerca de cinco quilômetros. Levava junto o amigo Cláudio.
"A gente vinha para a escolinha na mesma bicicleta. Ele pedalava e eu ia de carona. Me apoiava no cano mesmo da roda. Não tinha garupa, nada," lembra Cláudio, que hoje tem uma moto.
A bicicleta usada foi comprada com muito esforço. Era um luxo na vila. Privilégio de poucos.
"Ele sempre falava que queria uma bicicleta. E depois com muito sacrifício a gente conseguiu comprar. Ele usava para ir trabalhar e ir treinar. Nossa, mas foi muito difícil para a gente comprar. Mas tudo que a gente consegue com dificuldade é gostoso, nê?," lembra o pai Nízio.
"Foi um período bem complicado. Trabalhei com servente de pedreiro na obra. Eu jogava na escolinha do seu José Antônio e falei que precisava encontrar um emprego para ajudar em casa porque a situação estava difícil. Ai ele arrumou esse emprego para mim. Tinha 14 anos. E comecei a trabalhar na obra. Recebia por semana e o dinheiro que ganhava passava para o meu pai," completa Gilberto Silva.
Gilberto Silva chegou a fazer um teste no Atlético-MG, mas foi reprovado. Não desistiu. E as portas se abriram quando tinha 16 anos. Conseguiu entrar nas divisões de base do América-MG. Sem medo, arrumou a mala e se mudou para Belo Horizonte. Começou a treinar no juvenil, morava nos alojamentos do clube. O sonho de se tornar um jogador profissional parecia ser questão de tempo. Ele só não esperava enfrentar um drama familiar. Em casa, a mãe tinha adoecido. E lutada contra uma insuficiência renal. A vida da família Silva, que já era difícil, ficou ainda pior.
"Por ser o filho mais velho, eu me senti na obrigação de voltar. Tinha na cabeça que precisava arrumar um emprego e ajudar o meu pai porque a situação estava complicada em casa," lembra o volante, que não recebia salário no América-MG.
Gilberto Silva ficou apenas cinco meses treinando no América-MG até decidir abandonar o sonho e retornar para Lagoa da Prata. Uma decisão difícil, mas tomada com o coração.
"Nessa época até o meu treinador (Edson Gaúcho) procurava me incentivar a permanecer no América-MG. Ele sempre me falava para eu ficar quieto que logo teria condições de ajudar os meus pais. Mas chegou um momento que não consegui mais. Não hesitei voltar mesmo abandonando o sonho de virar jogador de futebol. Não queria ter dentro de mim no futuro um arrependimento por algo ruim que aconteceu e eu estava longe sem poder, de certa forma, contribuir," disse Gilberto Silva.
"A gente não queria que ele deixasse o futebol, mas o coração o fez voltar para trabalhar e nos ajudar. Ele sempre foi muito trabalhador e sempre quis apoiar muito a todos nós," recorda a mãe Maria Isabel.
Com a ajuda de amigos da família, Gilberto Silva arrumou um emprego em uma fábrica de doces. Ganhava um pouco mais de um salário mínimo por mês. Enquanto não estava trabalhando, ele cuidava das três irmãs mais novas - Jani, Juscélia e Joelma. O pai Dionísio passava grande parte do tempo cuidando da esposa. Dona Maria Isabel precisava viajar toda semana cerca de 100km entre Lagoa da Prata até Divinópolis para fazer a hemodiálise.
"Esse período foi bem sofrido para todos nós lá em casa. Considero o meu pai um guerreiro. Já vi o meu pai trabalhar 24 horas por dia, quase não dormir, para ganhar um pouco a mais para dar condições das coisas em casa e a minha mãe fazer o tratamento. Muitas vezes minha mãe ficava semanas internada no hospital. Então essa responsabilidade eu tive que assumir de certa forma. Mesmo não estando preparado. Mas a situação faz você espirrar como a gente diz no interior."
Sem tempo, Gilberto Silva largou a escola. Estudou até a oitava série do primeiro grau. Era difícil até mesmo arrumar uma horinha para jogar futebol. Pio Damião, gerente de produção da fábrica de doces em que Giba trabalhou, lembra com orgulho do antigo e dedicado funcionário.
"Ele veio pedir emprego para ajudar em casa. Tinha 16 anos, quase 17. Era um rapaz dedicado. Foi um bom trabalhador, meio calado, tímido, mas muito dedicado. Ele ficou dois anos e cinco meses aqui. O trabalho dele era preparar os aromas que eram usados nos caramelos. Algo que precisava de muita precisão."
Aos poucos, a vida da família Silva foi se acertando. Dona Maria Izabel conseguiu fazer um transplante de rins. As irmãs cresceram um pouco e não precisavam mais de tanta atenção. E a vontade de voltar a jogar no América reapareceu. Aos 19 anos, Gilberto Silva estava em um momento decisivo. Alcançando a idade limite para jogar nos juniores, ele buscava uma última chance. Fez um novo teste. Passou de novo. Inscrito na Taça São Paulo de Juniores pelo América-MG, ele foi um dos destaques da inédita conquista em cima do Cruzeiro. E assinou o primeiro contrato como profissional.
"Sempre tinha comigo que eu ia voltar. Nem que fosse para arriscar pela última vez. Mesmo que fosse para não dar nada e receber mais um não."
A carreira não parou mais de crescer. O Beto dos jogos amadores em Lagoa da Prata virou o Gilberto dos juniores do América e chegou aos profissionais incorporando o sobrenome. Como já havia um goleiro com o mesmo nome no time, o volante virou "Gilberto Silva". Na seleção só é chamado de Giba.
"Eu pensava que ele poderia ser profissional. Na época eu falava para a minha mulher que se o nosso filho chegasse a ser profissional pelo América seria bom demais. Mas olha como Deus é generoso com a gente," lembra o pai Nízio da Silva.
"Não fazia ideia de que ele seria um jogador assim, que chegaria até onde chegou hoje. Ele me deixa muito emocionada. Eu gostava que ele fosse jogar futebol. Falava sempre para ele que era melhor jogar do que ficar na rua," completou a mãe Maria Izabel.
O estilo de Gilberto Silva em campo veio das lições aprendidas com o pai. Cartão vermelho é algo raro na carreira do volante. Em 91 jogos pela seleção brasileira, nunca recebeu nenhum.
"Meu pai sempre me disse para jogar simples. Não conduzir a bola, dar sempre dois ou três toques na bola. Falava também para eu tomar cuidado para não me machucar ou não machucar ninguém. E sempre levei isso comigo. Procuro fazer o simples. É uma lição que levo até hoje."
Até em relação ao comportamento com o árbitro, Seu Nízio procurou dar conselhos importantes. Nada de ficar discutindo. É preciso respeitar a autoridade máxima em campo.
"Tem que saber que se o juiz apitou, acabou. Não tem jeito. Não vai mudar nada reclamar. O jogador que é expulso demais atrapalha o time dele. A pessoa tem que ter muita responsabilidade."
Sem perder um minuto da Copa de 2002
O sucesso aconteceu rapidamente. Veio o título da Série B pelo América-MG, a negociação com o Atlético-MG e a primeira convocação para a seleção brasileira. Seis jogos e três gols com a amarelinha bastaram para Gilberto Silva ser chamado para a Copa do Mundo de 2002.
"Foi tudo muito rápido. Na época da Copa do Mundo foi um orgulho imenso. A gente jamais imaginava que ele disputaria uma Copa. E ainda mais ganhar. Tinha gente lá na seleção que ele admirava, via como ídolos no futebol," disse a irmã Jani.
A chance de ser titular caiu no colo de Gilberto Silva. O titular Emerson se machucou na véspera da estreia na Copa do Mundo durante o treino recreativo.
"Foi uma apreensão total na hora. Até porque o Emerson era uma referência na seleção. Ele era capitão, titular. Só vim saber que jogaria na madrugada quando o Felipão e o Murtosa vieram no meu quarto para falar que eu seria titular. Levei até um susto quando eles bateram na minha porta naquela hora."
Gilberto Silva atuou em todas as partidas da Copa do Mundo sem nunca ter sido substituído. Está há oito anos como titular da seleção. Além de Felipão, foi homem de confiança de Carlos Alberto Parreira e, agora, de Dunga. Mesmo assim, precisou conviver com algumas críticas. Nunca perdeu a calma.
"Vontade (de perder a calma) em certos momentos eu tenho, lógico. Principalmente por causa da minha família. Eles sofrem muito mais do que eu. Eles ouvem e ficam chateados. Mas procuro ver o lado profissional. Quando estou ali no campo estou para ser julgado pelo comentarista, pelo narrador. Se eu jogar bem ou mal sei que vão comentar. Quando a crítica não é correta isso me irrita bastante. Mas não adianta eu ficar diante da câmera brigando com o cara ou mandando recado. Não é por ai. Tenho que continuar fazendo o meu trabalho, dar a minha resposta dentro de campo. E mostrar que a crítica não está batendo com o que eu estou fazendo em campo," disse Gilberto Silva, que sabe das suas limitações.
"Sempre fui um trabalhador, nunca fui um jogador habilidoso como é típico do nosso futebol, do brasileiro. Nunca fui esse jogador e sempre soube disso. Sei que o tempo todo vou estar atrás do adversário para tomar a bola. Procurei aperfeiçoar isso. Sempre fui jogador de grupo, estar disposto a ajudar, me sacrificar."
Com a mesma calma nas palavras, Nízio considera que a longevidade do filho na seleção brasileira é uma prova da qualidade do futebol dele.
"Os treinadores têm confiança nele acho que pela capacidade que ele tem dentro da turma. Ele consegue unir todo mundo. Ele é um cara de moral também, de respeito, de uma responsabilidade muito grande. O Beto (Gilberto Silva) não joga para si. Ele joga para o Brasil, para a seleção. É como um soldado que vai para a guerra defender o seu país. E acho que todo mundo que está na seleção e veste aquela camisa deveria pensar assim. Ele não tem vaidade. Falo para ele ficar quieto e fazer o trabalho dele."
Quando olha para o filho, Seu Nízio vê o mesmo menino que corria atrás da bola nos campos de terra de Lagoa da Prata.
"O sucesso foi bom para ele. Ele poderia ter mudado, mas eu vejo o Gilberto do mesmo jeito, o mesmo garoto de antes. Ele trata todo mundo do mesmo jeito. A gente tem que ser o que a gente é. Nunca pode mudar. Tem que ficar sempre com o pezinho no chão. O orgulho é muito grande pelo o que ele faz e o pelo caráter que ele tem. O caráter de um homem vem em primeiro lugar. Ele tem um coração muito grande," disse o pai Nízio.
Diferente de Dunga, Gilberto Silva não é um líder que grita, que se impõe em campo pela forte personalidade. Prefere apostar no jeito mineiro. Algo que deu certo até na Inglaterra, onde foi capitão do Arsenal. Jogou por seis anos no clube onde ganhou o apelido de "The Invisible Wall" (O muro invisível).
Atualmente, o volante mora na Grécia com a esposa Simone e o filho Gilberto Júnior. Joga no Panathinaikos, onde conquistou o título nacional nesta temporada. Aos 33 anos, está bem adaptado ao exterior. Só sente falta da comida da mãe, preparada no fogão a lenha.
"A comida é bem diferente. Tenho saudade da comida de mãe. Comida de mãe é comida de mãe, nê, não tem jeito. Ela faz um macarrão com salsicha que é maravilhoso. Só ela sabe a receita, não passa para ninguém."
"Ele come de tudo. Só não come jiló. Mas ele gosta muito de um franguinho caipira. E um peixe também no fogão a lenha. Ele ama a comida feita no fogão a lenha. Ele chega aqui e fica louco! É uma coisa típica de roça mesmo, de mineiro," conta a mãe Maria Izabel.
Gilberto Silva não pode negar. A vida hoje é bem mais doce do que nos tempos em que trabalhava na fábrica de bala de caramelo.
"Posso ter mais conforto, dar uma vida melhor para os meus pais, para os meus filhos. É bem mais doce (risos)."
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