Eduardo Galeano definia sem a menor modéstia sua capacidade para jogar futebol. “Jogava muito bem, era uma maravilha”, dizia, antes da ressalva fatal. “Mas só de noite, enquanto dormia: de dia era o pior perna de pau que já passou pelos campos do meu país.”
A mordaz e bem-humorada autoavaliação abre Futebol ao Sol e à Sombra, lançado em 1995. Livro em que o escritor e jornalista uruguaio transferiu para o papel a paixão pelo futebol que permeou toda sua vida, encerrada nesta segunda-feira (13), aos 74 anos, vítima de um câncer na cavidade torácica.
Futebol ao Sol e à Sombra tem para a literatura esportiva o mesmo significado que a obra mais famosa de Galeano, Veias Abertas da América Latina, tem para a esquerda. Nasceu clássico e apresentou uma visão inédita para um tema exaustivamente debatido. Mas se o próprio Galeano disse, em 2014, que não releria Veias Abertas..., até o fim da vida ele percorreu estádios em busca de um bom jogo – seja pelo seu Nacional de Montevidéu, pela Celeste ou por puro prazer: “Não passo de um mendigo do futebol. Ando pelo mundo de chapéu não mão, e nos estádios suplico: Uma linda jogada, pelo amor de Deus!”.
Confira trechos de Futebol ao Sol e à Sombra que exprimem o jogo segundo Galeano. Um manual prático de amor ao futebol que sobrevive ao apito final do escritor.
O torcedor
“Uma vez por semana, o torcedor foge de casa e vai ao estádio. A cidade desaparece, a rotina se esquece, só existe o templo. Neste espaço sagrado, a única religião que não tem ateus exibe suas divindades.”
O gol
“O gol é o orgasmo do futebol. E, como o orgasmo, o gol é cada vez menos freqüente na vida moderna.”
O árbitro
“Seu trabalho consiste em se fazer odiar. Única unanimidade do futebol: todos o odeiam. É vaiado sempre, jamais é aplaudido.”
O técnico
“Ele acredita que o futebol é uma ciência e o campo um laboratório, mas os dirigentes e a torcida não apenas exigem a genialidade de Einstein e a sutileza de Freud, mas também a capacidade milagrosa de Nossa Senhora de Lourdes e a paciência de Gandhi.”
A bola
“A bola também tem suas veleidades, e às vezes não entra no gol porque no ar muda de opinião, e se desvia. É que ela é muito susceptível. Não suporta que a tratem a patadas, nem que batam nela por vingança. Exige que a acariciem, que a beijem, que a embalem no peito ou no pé. É orgulhosa, talvez vaidosa, e não lhe faltam motivos: ela sabe muito bem dá alegria a muitas almas quando se eleva com graça, e que são muitas as almas que se estragam quando ela cai de mau jeito.”
Futebol e devoção
“Em que o futebol se parece com Deus? Na devoção que desperta em muitos crentes e na desconfiança que desperta em muitos intelectuais.”
Final de 50
“Quando a voz de Carlos Solé transmitiu a triste notícia do gol brasileiro, minha alma caiu no chão. Recorri então ao mais poderoso de meus amigos. Prometi a Deus uma quantidade de sacrifícios, se Ele aparecesse no Maracanã e virasse o jogo. Nunca consegui recordar as muitas coisas que prometi, e por isso nunca pude cumpri-las.”
Di Stéfano
“O campo inteiro cabia nas suas chuteiras. A cancha nascia de seus pés, e de seus pés crescia. De arco a arco, Alfredo Di Stéfano corria e corria pelo gramado: com a bola, mudando de rumo, mudando de ritmo, do trotezinho cansado ao ciclone incontido; sem a bola, deslocando-se para os espaços vazios e buscando ar quando o jogo ficava congestionado.”
Garrincha
“ Garrincha foi o homem que deu mais alegria em toda a história do futebol. Quando ele estava lá, o campo era um picadeiro de circo; a bola, um bicho amestrado; a partida, um convite à festa. Garrincha não deixava que lhe tomassem a bola, menino defendendo sua mascote, e a bola e ele faziam diabruras que matavam as pessoas de riso.”
Beckenbauer
“Chamado de Kaiser, com fidalguia mandava na defesa e no ataque: atrás, não deixava escapar nenhuma bola - nenhuma mosca, nenhum mosquito que quisesse escapar; e quando se lançava para a frente, era um fogo que atravessava o campo.”
Pelé
“Quando Pelé ia correndo, passava através dos adversários como um punhal. Quando parava, os adversários se perdiam nos labirintos que suas pernas desenhavam. Quando saltava, subia no ar como se o ar fosse uma escada. Quando cobrava uma falta, os adversários que formavam a barreira queriam ficar de costas, de cara para a meta, para não perder o golaço.”
Gol do Brasil em 70
“Tostão recebeu a bola de Paulo César e avançou até onde pôde. Encontrou a Inglaterra inteira recuada na área. Até a rainha estava lá. Tostão fintou um, outro e mais outro, e passou a bola a Pelé. Outros três jogadores o abafaram no ato. Pelé simulou que seguia viagem e os três adversários se atiraram na fumaça, mas ele apertou o freio, girou e deixou a bola nos pés de Jairzinho, que vinha por ali. Jairzinho tinha aprendido a escapar da marcação quando ganhava a vida no subúrbio mais duro do Rio de Janeiro: saiu disparado como uma bala negra, driblou um inglês e a bola, bala branca, atravessou a meta do arqueiro Banks.”
Zico e o gol do escorpião
“A bola chegou, cruzada ao centro, pela direita. Zico, que estava na meia lua da área, entrou com tudo. No embalo, ultrapassou-a: quando percebeu que a bola tinha ficado para trás, deu uma cambalhota no ar e em pleno vôo, com a cara para o chão, chutou-a de calcanhar. Foi uma bicicleta, mas ao contrário. ‘Contem-me como foi esse gol’, pediam os cegos.”
Maradona
“Maradona é incontrolável quando fala, mas muito mais quando joga: não há quem possa prever as diabruras deste criador de surpresas, que jamais se repete e goza desconcertando os computadores. Não é um jogador veloz, tourinho de pernas curtas, mas leva a bola costurada no pé e tem olhos em todo o corpo. Seus malabarismos inflamam o campo.”
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