Não terá as consequências de um tratado como Tordesilhas, que dividiu o Novo Mundo entre Espanha e Portugal, no final do século XV. Mas no microplaneta da Vila Olímpica, que se abre neste domingo a atletas de 205 países que disputarão os Jogos do Rio, uma geografia particular estará estabelecida. Na partilha dos 200 mil metros quadrados, com sete condomínios e 31 prédios de 17 andares, inimigos históricos aceitaram uma “trégua” para conviver em espaços comuns. As relações de força e tamanho de cada nação ganharam novas dimensões, e fronteiras e continentes acabaram reconfigurados: o Brasil, com a segunda maior “população” de atletas, faz fronteira com Holanda e México, enquanto a Austrália, habituada ao isolamento entre os oceanos Pacífico e Índico, dividirá limites com Argentina e Alemanha.
Para demarcar esses território, a lógica pouco lembrou a da geopolítica mundial. Em vez de guerras, acordos diplomáticos e disputas econômicas, étnicas e religiosas, na babel erguida na Barra, os critérios seguem, em muitos casos, motivos bem mais prosaicos.
“É um grande quebra-cabeça. Sabemos, por exemplo, que alguns não gostam de ficar perto dos latinos, que gostam de fazer barulho e de ouvir música alta. Perguntamos aos países se tinham preferência de compartilhar ou não o prédio com algum outro. Podia já ter havido problema em edições anteriores dos Jogos”, conta o argentino Mario Cilenti, diretor de Vila, a quem coube o papel de gerenciar as negociações que separaram as nações esportivas. “ As grandes questões mundiais contam pouco. Mas, é claro, na hora em que alocamos as delegações, pensamos: ‘Bom, melhor não deixar este aqui neste prédio, melhor não’. É mais uma busca por prevenir possíveis problemas do que propriamente um veto vindo dos países”, completa.
Anfitrião, o Brasil teve o privilégio de ser o primeiro a escolher o edifício que ocuparia. Optou pelo mais isolado: ao sul da vila, a casa brasileira é a mais distante da entrada, dos restaurantes e da zona de convivência, numa opção do Comitê Olímpico do Brasil (COB) a fim de manter a privacidade e a concentração dos atletas.
Em seguida, valeu a lei da maioria: as 10 maiores delegações selecionaram seus prédios, sucedidas pelas 50 seguintes e assim por diante. Na distribuição, foram reservados lugares, na mesma vila, para israelenses e palestinos, ou para sauditas e iranianos (que chegaram a romper relações diplomáticas este ano).
As chaves dos apartamentos começaram a ser entregues aos chefes de missão na segunda-feira passada. Na tarde da última sexta-feira, 50 delegações já tinham feito check-in na Barra. As menores ainda poderão ser remanejadas para facilitar o “encaixe” das duas centenas de países nas três dezenas de prédios. Apesar disso, antes mesmo da chegada dos atletas, os edifícios já ganhavam adornos de símbolos nacionais: marcando o novo e provisório território de cada um, varandas foram “vestidas” com bandeiras e faixas.
Potências e periferias
O prédio brasileiro era o primeiro a ser avistado por quem olhava a partir das avenidas Salvador Allende e das Américas: além da faixa do Time Brasil, adesivos nas sacadas formavam uma Bandeira Nacional estilizada. O edifício da França, numa área central da vila, já ostentava “bleu, blanc, rouge” de cima a baixo. Os australianos capricharam em faixas com o nome do país, assim como Canadá, Grã-Bretanha, Ucrânia, Suécia, Argentina, Alemanha e México já enfeitavam as janelas.
Houve ainda os mais criativos: o time da Eslovênia, nação que integrava a antiga Iugoslávia, expôs a mensagem, em inglês, “I feel Slovenia” (Eu sinto Eslovênia), com as letras do país que formam “love” destacadas. Seu prédio, ao lado do francês, fica de frente para a zona internacional, e pode ser um dos mais afetados pelo barulho.
Esta distribuição geográfica da vila coincide, em alguns casos, com o que acontece na “vida real” do globo. Delegações de países periféricos que orbitam vizinhos maiores, pediram para ficar próximas a fim de se apoiar na estrutura de grandes potências. É o caso das nações da Oceania, que conta com dois principais times olímpicos: Austrália e Nova Zelândia. Outras ilhas que compõem o continente, como Vanuatu, Papua Nova Guiné e Fiji, entre outras, estarão a apenas alguns andares de distância.
“Estamos com a maior parte dos andares de um dos edifícios, compartilhado com nossos amigos da Oceania. Mas alguns dos nossos atletas, como os do remo, vela e triatlo, ficarão em Copacabana, mais perto das arenas de competição”, conta Mike Tancred, diretor de Comunicações do Comitê Olímpico Australiano (AOC), uma das delegações mais populosas dos Jogos (são 410 atletas).
O ranking mundial de densidade demográfica, aliás, é outro número subvertido pela Olimpíada. O planeta Vila será composto por cerca de 10.500 atletas — o número total de vagas nos 3.604 apartamentos pode chegar a 17.950, incluindo comissões técnicas. Os Estados Unidos têm 550 esportistas classificados e, ainda que nem todos fiquem no complexo da Barra, serão a nação mais populosa, título pertencente à China na realidade mundial. O país de 1,3 bilhão de habitantes estará representado por 416 esportistas. Enquanto seu vizinho ultrapopuloso, a Índia, o outro que também supera a barreira do bilhão de pessoas, vem ao Rio com apenas 90 atletas.
Outro gigante, a Rússia terá sua acusação de doping estatal julgada hoje pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) e está ameaçada de sumir do mapa olímpico. No caminho inverso, uma nação inexistente estará nos Jogos: a dos refugiados, com 10 atletas obrigados a fugir de seus países.
Escambo Olímpico
É na Zona Internacional em que todos eles, seja de nações vizinhas, distantes, amigas ou inimigas, vão se encontrar com frequência. É uma área de convivência com banco, casa de câmbio, café, lavanderia, salão de beleza e dois espaços de lazer: um palco com telão, onde haverá apresentações e serão exibidas as competições, e uma reprodução das praias cariocas, com areia, cadeiras e barracas.
É ali que devem se dar as conversas entre ídolos ou quase anônimos de diferentes países. É onde, imagina-se, será dado o pontapé inicial de encontros que podem ser a fagulha para o consumo do estoque recorde de preservativos oferecido pela organização em 2016. E, mantida a tradição de Jogos anteriores, quanto mais se aproximar o fim da Olimpíada, deverá se transformar num verdadeiro mercado, mas na base do escambo: atletas trocam entre si todo tipo de acessórios e elementos que sirvam de recordação, de fotos, chaveiros, vídeos e camisas aos cobiçados agasalhos de delegação, considerados um must do uniforme olímpico.
“É um evento com um simbolismo de aproximação dos povos e da promoção do diálogo. Essa é a mensagem olímpica”, diz Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da FGV-SP.
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