Uma queixa recorrente em relação às universidades brasileiras diz respeito a uma certa “desconexão” com a sociedade. Nossos cientistas e pesquisadores são muito respeitados, seus trabalhos figuram nas principais publicações científicas do planeta, mas com frequência essas ideias não chegam ao dia a dia das pessoas. “No Brasil, os poucos recursos para a ciência normalmente vão para centros de pesquisa linkados às universidades, mas muitas vezes elas estão desconectadas da realidade. Para muitos pesquisadores brasileiros, um paper [trabalho incluído numa publicação científica de renome] tem mais importância do que a patente de um produto ou seu impacto na sociedade”, critica Paulo Henrique Fraccaro, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Artigos e Equipamentos Médicos (Abimo).
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E é precisamente essa maior sinergia com a comunidade, contribuindo para identificar e resolver seus problemas reais, o maior legado do hiPUC – programa de inovação em saúde desenvolvido em parceria com professores e egressos mentores e egressos do Programa de Inovação em Tecnologias Médicas (Biodesign), da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, cuja fase Bootcamp se encerra no próximo dia 15. “Tive a oportunidade de participar como tutor de pessoas de diferentes áreas que estiveram no hospital, vivendo o dia a dia da atividade clínica, em contato com os problemas e dificuldades da nossa rotina”, observa Roberto Pecoits, nefrologista da Escola de Medicina da PUCPR e um dos mentores do programa. “O profissional médico não é treinado para resolver os desafios que não sejam diretamente ligados à nossa área – principalmente os de tecnologia. Mas, ao mesmo tempo, nós que estamos no front temos a noção exata das demandas. O impacto de um programa executado de maneira intensiva é sensacional, porque põe pessoas acostumadas a resolver problemas de tecnologia, engenharia, design e outras áreas em contato com o profissional que lida com essas necessidades no mundo real. É um modelo fantástico!”.
Ele também chama a atenção para o fato de o programa ser desenhado para criar soluções às demandas locais – embora possam ter alcance global. “Na Medicina, ainda dependemos muito da tecnologia e do conhecimento produzido fora. Este é um passo importante para ajudar a encontrar soluções customizadas e criar tecnologias e informações que possam ser desenvolvidas aqui, com reflexos nas patentes e direitos autorais. Será um ganho enorme na geração de riqueza”, considera.
O nefrologista acrescenta que o programa está perfeitamente alinhado às estratégias já adotadas pela PUCPR: “Temos o substrato para tudo isso: uma Escola de Medicina atuante, massa crítica, um programa de pós-graduação bastante sólido, acesso aos hospitais, outras áreas que dão suporte ao desenvolvimento de tecnologias, como engenharias e design, e ainda uma Agência de Inovação com uma aceleradora para viabilização de empreendimentos… temos tudo para expandir o programa e fazer da cidade um polo de inovação em saúde e de formação de empreendedores”, destaca.
Pró-reitor de Graduação da universidade, Vidal Martins concorda: “Esta é mais uma iniciativa que tem conexão total com os processos de mudança de aprendizagem que temos implementado”, destaca. “E não é uma mudança em um professor, uma equipe ou um núcleo. A proposta é fazer a transformação na universidade como um todo. E, com relação ao programa, ano que vem vamos fazer novamente, não é uma ação isolada. A tendência é que ganhe corpo e contribua efetivamente para um ecossistema de inovação em saúde em torno da universidade, com todos os seus desdobramentos na comunidade. É um projeto sustentável e permanente.”
E com reflexos em outras partes do mundo. CEO da Tissue Regenix, empresa que licenciou a tecnologia das válvulas cardíacas descelularizadas na Europa, o britânico Antony Odell considera a iniciativa importante para “ampliar a rede de contatos para promover a inovação, permitindo que pessoas de diferentes países possam trabalhar juntas”: “Temos trabalhado com a PUCPR há mais de 5 anos e tem sido uma troca muito boa de conhecimentos. Torcemos para que esse projeto prossiga por muito tempo”, conclui.
Mentores de Stanford estão otimistas
Os mentores estrangeiros do hiPUC se mostraram bastante satisfeitos com o projeto: “Nosso objetivo é tornar o evento permanente na universidade, e esta é uma grande forma de começar. Vejo que vocês têm todos os ingredientes necessários, e está sendo muito bom trabalhar aqui. Essa metodologia, em que o aluno passa um tempo na universidade e então faz um serviço para a sociedade é uma forma muito boa de aprendizado. Quando as universidades reconhecerem esse valor, isso durará para sempre”, analisa o médico Eric Sokol, professor associado, inventor e pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de Stanford. “Os resultados virão com o tempo, e não necessariamente estarão ligados a fazer dinheiro. O sucesso também pode estar relacionado a criar um ambiente melhor para a saúde e fazer as pessoas mais felizes.”
O americano Ravi Pamnani, egresso do programa Biodesign de Stanford e diretor de Marketing e Relacionamento Médico da Transcend Medical, destaca que “há grandes oportunidades a explorar” em Curitiba a partir do programa, mas que o principal nem são as soluções que vão surgir nesta primeira etapa: “O principal objetivo é desenvolver uma ideia. Esperamos que o maior produto do hiPUC Bootcamp sejam os próprios participantes. Se eles saírem daqui e disseminarem o conteúdo de alguma forma, já estamos felizes”.
Ravi não acha que Curitiba deva perseguir o objetivo de ser o “Vale do Silício brasileiro” em inovação médica. “Ao invés de ser o segundo Silicon Valley, a cidade deve ser o primeiro ‘Curitiba Valley’. Replicamos aqui o que aprendemos lá, mas excluindo o que não tem a ver com a realidade brasileira e adicionando o que pode dar certo aqui. Claro que duas semanas é muito pouco, mas com essas ideias sendo repetidas ano a ano, podemos criar um polo”, acredita.
Para o oftalmologista Robert Chang, outro mentor e palestrante do Centro para Inovação em Saúde Global da Universidade de Stanford, este é apenas o primeiro passo. “Cuidar da inovação é um grande desafio. Temos que começar aos poucos. Curitiba é uma cidade diferenciada, os participantes são empolgados e os mentores muito competentes. É bom estarmos fazendo isso aqui, pois é necessário mostrar e falar sobre isso para as próximas gerações de aventureiros”, avalia. “Mas é apenas o começo. Temos que fazer o programa várias vezes, com disciplina, competência e perseverança. Esse é o segredo do sucesso.”
E dá um último conselho: “Precisamos ensiná-los a criar novas soluções, sem que sejam necessariamente tecnológicas. Temos que ensinar o básico, a perceber as necessidades e criar confiança. Nosso objetivo é criar um movimento, elaborar projetos, dispositivos e soluções de saúde e melhorar a vida das pessoas”.