Quando você nasce, seu cérebro é extraordinariamente ativo. Forma neurônios, constrói conexões (as famosas sinapses), permite que as pessoas aprendam a falar, escrever, correr, tocar instrumentos musicais, operar máquinas complexas. Até que o cérebro chega ao auge, para de produzir células e começa a envelhecer. E mais: qualquer dano mais grave é irreversível, porque o cérebro se organiza em compartimentos especializados em atividades específicas — se o centro da visão, por exemplo, se perder, a pessoa nunca mais voltará a enxergar.
Esse era o cenário apresentado pela medicina até poucas décadas atrás. Tudo isso mudou a partir dos anos 1980, quando pesquisas com macacos começaram a comprovar que o cérebro mantém, ao longo da vida, a capacidade de produzir neurônios. Mais do que isso: ele é extremamente plástico.
Ou seja, tem o poder de mudar de acordo com os estímulos e as necessidades do organismo. Não só novas células surgem e se deslocam para as áreas onde são mais necessárias, como também a quantidade de conexões, em cada campo do cérebro e de todo o sistema nervoso, se altera de acordo com a demanda. De acordo com os estímulos que se apresentam, o cérebro se ajusta para dar conta das novas prioridades.
Os motoristas de táxi de Londres, por exemplo, têm hipocampo maior do que os motorista de ônibus. E isso acontece porque eles precisam ampliar sua capacidade de localização espacial, na comparação com os profissionais que seguem diariamente rotas fixas.
Recuperação inacreditável
É por isso que existem incontáveis casos de pessoas que sofrem danos severos, com acidentes ou aneurismas, e ainda assim recuperam a fala ou os movimentos. Foi o caso do poeta e professor catalão Pedro Bach-y-Rita. Ele tinha 65 anos em 1959, quando sofreu um derrame que paralisou seu rosto e boa parte de seu corpo. Ao sair do hospital, ele foi deixado em casa, com um quadro aparentemente irreversível.
Poucos meses depois, ele havia voltado a usar a máquina de escrever e resgatou o hábito de fazer caminhadas em montanhas. “Ele se sentava diante da máquina de escrever, com o dedo do meio sobre a tecla desejada, e depois soltava todo o seu braço paralisado sobre ela. Quando desenvolveu essa técnica, começou a soltar apenas o pulso, e finalmente os dedos, um de cada vez”, descreve o psiquiatra Norman Doidge no livro “O cérebro que se transforma: Como a neurociência pode curar as pessoas” (Editora Record).
Na época, diante da recuperação, os médicos imaginaram que o derrame não havia sido tão sério. Depois que ele faleceu, de enfarto, durante uma caminhada, descobriram que a lesão era gravíssima. Ele não deveria ter voltado a se movimentar. Mas os treinos a que ele se submeteu levaram o cérebro a mudar a direção das conexões.
O filho de Pedro, que iniciou de maneira intuitiva seu processo de recuperação, é o neurocientista americano Paul Bach-y-Rita. As descobertas que ele fez ao longo do processo de melhoria do pai o levaram a dedicar a vida a remodelar cérebros. Ele desenvolveu, por exemplo, um implante de retina, acompanhado de técnicas que ajudam a recuperar a visão em cegos.
Paul Bach-y-Rita, que faleceu em 2006, também trabalhou no desenvolvimento de um projeto por encomenda da Nasa: luvas grossas com sensores de tato para astronautas. Mais uma vez, ele contava com a plasticidade cerebral para que o sistema nervoso aprenda a adotar os sensores como parte de sua própria rede de conexões — algo parecido com os projetos do brasileiro Miguel Nicolelis, que ampliam os limites do cérebro a ponto de conectar o pensamento a máquinas.
Sua iniciativa mais recente neste sentido foi vista no ponta-pé inicial da Copa do Mundo de 2014, no Brasil: um exoesqueleto que paraplégicos podem controlar com a mente. Nesse bravo mundo novo, centrado apenas no poder dos relâmpagos cerebrais, nossas habilidades motoras, perceptuais e cognitivas se estenderão ao ponto em que pensamentos humanos poderão ser traduzidos eficiente e acuradamente em comandos motores capazes de controlar tanto a precisa operação de uma nanoferramenta como manobras complexas de um sofisticado robô industrial”, ele anunciou, em seu livro “Muito além do nosso eu” (Cia das Letras).
Capacidade de adaptação
A plasticidade é uma característica de qualquer cérebro, humano ou não — pesquisadores da Universidade de Provence conseguiram ensinar macacos a usar uma ferramenta parecida com uma colher para comer; eles precisaram de 700 tentativas para sair da total falta de habilidade para o uso correto em 100% das vezes. Ao final do processo, mais de 15 áreas de seus cérebros tinham mudado de configuração.
A capacidade de mudar é muito acelerada no primeiro ano de vida, o que explica as diferenças gigantescas de comportamento, movimentação e cognição entre um recém-nascido e um bebê em seu primeiro aniversário.
Mas a plasticidade continua existindo ao longo da vida.
Ela leva o cérebro a alcançar o auge do desempenho entre os 20 e os 40 anos. A partir de então, começa a se degradar e a perder a agilidade para refazer e desfazer conexões. Por isso, com o passar do tempo ou em casos de doenças e acidentes, ela precisa ser estimulada.
Sabe-se, por exemplo, que é possível reverter os danos que pareciam condenar as crianças que nasciam com lábios leporinos. Cirurgias corretivas realizadas logo aos três meses de idade podem reverter uma das mais graves consequências do problema: a dificuldade auditiva, que reduz a capacidade de aprendizado. No passado, uma criança que nascesse com lábios leporinos receberia dos médicos o aviso de que ela certamente sofreria de retardo mental. Há três décadas, esse diagnóstico pessimista desapareceu.
Essa capacidade de adaptação garante o aprendizado. Por isso é verdade que crianças submetidas a diferentes idiomas, logo na primeira infância, têm mais facilidade para se tornar multilíngues. A plasticidade leva o córtex pariental inferior esquerdo a ser maior em bilíngues, em resultado do esforço para aprender um novo idioma.
Da mesma forma, quando um cego toca os caracteres em braile com as pontas dos dedos, seu centro de visão no cérebro é ativado. Por outro lado, traumas de infância, por exemplo, também moldam o cérebro. Para lidar com eles, é preciso trabalhar para reconstruir conexões. “A psicanálise é, de fato, uma terapia neuroplástica”, afirma Norman Doidge em seu livro.
Os estímulos constantes ajudam a moldar o cérebro e explicam, por exemplo, porque alguns países se destacam pela prática de um determinado esporte, ou na engenharia, ou na música: acontece que as crianças daquela parte do planeta recebem estímulos em uma direção específica. Por exemplo: músicos profissionais, que praticam ao menos uma hora por dia, têm córtex maiores.
Cérebro treinado
Na medida em que uma pessoa envelhece, ou sofre aneurisma, derrame ou acidente que provoquem danos cerebrais ou mutilações em membros, ela precisa treinar para recuperar a capacidade cerebral. Isso é possível: esforços repetitivos numa determinada direção movem as sinapses e reposicionam a distribuição das ligações. Como são esses treinamentos?
Existem limites, é claro. Essa é a maior fonte da dificuldade para combater Parkinson ou Alzheimer. E há também um problema: a plasticidade está diretamente ligado a vícios e comportamentos compulsivos, porque o cérebro se adapta de acordo com comportamentos e estímulos rotineiros. Mas o fato de sabermos do potencial reconstrutivo do cérebro ajuda a trabalhar em soluções.
Um neurocientista americano, Michael Merzenich, criou uma empresa, a BrainHQ, que fornece um treinamento para ajudar a desenvolver a plasticidade cerebral. Ele consiste em 15 minutos de atividades de concentração, utilizando um software com atividades que parecem jogo de celulares. A prática é repetida diariamente, durante 15 dias (leia mais na entrevista com o pesquisador).
Também existe uma série de pesquisas em andamento visando um remédio que acelere a plasticidade neuronal. Mesmo com estes futuros medicamentos, é possível manter o cérebro ativo realizando atividades físicas e intelectuais, passeios e viagens e contatos constantes com grupos de familiares e amigos.
Até mesmo a prática regular de meditação é capaz de mudar a distribuição das conexões cerebrais, e assim ajudar a reduzir os riscos de desenvolver ansiedade e depressão.
ENTREVISTA |
“As pessoas não sabem o poder que têm”
Para o neurocientista Michael Merzenich, a plasticidade cerebral garante qualidade de vida e reduz a velocidade de envelhecimento do cérebro
Há mais de três décadas o pesquisador Michael Merzenich, neurocientista e professor emérito da Universidade da Califórnia, estuda a capacidade de alteração do sistema nervoso. Ele ajudou a desenvolver técnicas inovadoras de mapeamento e observação do cérebro e, aos 75 anos, continua publicando estudos cruciais sobre a plasticidade neuronal. Na entrevista a Gazeta do Povo, ele explicou que o poder de adaptar o cérebro pode ser usado para ganhar qualidade de vida.
Gazeta do Povo — Como o senhor define a plasticidade cerebral?
Michael Merzenich — O cérebro muda em dois sentidos. Ele muda suas conexões, que são direcionadas e redirecionadas para criar e desenvolver habilidades específicas. Todas as habilidades e talentos que definem você como um ser humano foram adquiridas ao longo do tempo, graças à capacidade de alteração do cérebro. Mas existe um outro sentido em que o cérebro se adapta: ele não muda apenas suas conexões, mas ele altera toda a sua forma. Assim como seu corpo, o cérebro pode estar em boa forma, ou em má forma. Assim como acontece com o corpo, o modo como você vive, o quanto você exercita seu cérebro, define sua saúde cognitiva e mental.
Por que a plasticidade é maior na juventude?
O sistema nervoso está sempre em alteração, ao longo de toda a vida, ele se revisa ao longo de toda a vida. A diferença entre um bebê e um adulto é que, na medida em que a pessoa cresce, o cérebro estabelece mecanismos que controlam as alterações. O cérebro se altera, mas ele controla as transformações, cada vez mais. Por isso é mais difícil aprender a uma nova habilidade com o passar dos anos.
Podemos exercitar o cérebro para mantê-lo saudável?
Com certeza. Foi por isso que nós criamos o FastForward (Merzenich participou de um grupo que desenvolveu este software de treinamento para o sistema nervoso). Cada um pode melhorar sua performance em qualquer habilidade que seja útil ou interessante para a pessoa. A maioria das pessoas não sabe o poder que têm, a capacidade de usar a plasticidade cerebral para crescer e aprender de forma contínua. A performance mental das pessoas começa a decair, em geral, a partir dos 30 anos – a não ser que elas façam algo sobre isso. Se elas praticam o cérebro nessa idade, imagine a qualidade de vida que terão aos 60 ou 70 anos! Com exercícios simples, realizados poucos minutos por dia, é possível retardar esse processo e até mesmo prevenir a perda de memória e doenças como o Alzheimer.