O maior erro que pode ser cometido no momento, com as nossas embaixadas sob ataque e as multidões entoando slogans antiamericanos por todo o norte da África e o Oriente Médio, é acreditar que há uma reação popular genuí­­na contra um vídeo anti-islâmico feito nos Estados Unidos.

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Há um modo gritante de se cometer esse erro, por meio do pedido de desculpas emitido pela embaixada norte-americana no Cairo, na terça-feira, enquanto os protestos do lado de fora se fortaleciam; pela decisão da Casa Branca de exigir que o YouTube retirasse o vídeo do ar; e pelas várias vozes – incluindo, acreditem, a de um professor universitário veterano da Ivy League – que sugerem que quem promoveu o vídeo deveria ser preso por abusar de sua liberdade de expressão garantida pela Primeira Emenda da Constituição dos EUA.

Mas há também um modo condescendente de se cometer o mesmo erro, que é defendendo orgulhosamente a liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, tratar da violência das multidões como uma expressão de irracionalidade animal, tão distante da práxis política quanto estouros de manadas de búfalos ou tempestades de verão.

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Há certamente uma irracionalidade agindo nas ruas do Cairo e de Benghazi, mas existe algo muito mais calculado também. As multidões não estão lá por causa de um filme e o embaixador dos EUA não morreu porque, aparentemente, um grupo de cristãos coptas da Califórnia decidiu usar seus parcos talentos para ridicularizar o profeta Maomé.

O que estamos testemunhando, em vez disso, é um exercício da boa e velha política do poder, que usou um vídeo mais burro que uma porta como pretexto para uma violência que poderia ter sido desencadeada por qualquer outra desculpa. Isso aconteceu muitas vezes antes, e nós, ocidentais, já deveríamos ter nos acostumado a isso. Qualquer um que precise de uma ajuda para se lembrar pode consultar as memórias de Salman Rushdie, que tiveram um trecho publicado na última edição da revista New Yorker e deverão chegar às livrarias nesta semana, que oferecem um relato tocante de como é a sensação de se viver sob a ameaça de morte de um aiatolá e ver outras pessoas sofrerem nas mãos de multidões que clamam por sua cabeça.

O que Rushdie compreende, e que também deveríamos compreender, é que o assunto crucial não é como o romancista tratou o profeta do Islã em Os Versos Satânicos. A questão está no desejo dos líderes do Irã em manter viva a chama da revolução após o fiasco da guerra com o Iraque; o desejo dos religiosos paquistaneses de testar a boa fé do primeiro ministro; e o desejo dos extremistas religiosos da Inglaterra em se lançar à posição de porta-vozes de toda a comunidade muçulmana.

A onda de violência de hoje se deve muito mais a uma política real e sanguinária do que à loucura das multidões. Como David Ignatius, do Washington Post comentou, tanto os ataques egípcios quanto os líbios parecem ser desafios premeditados contra os partidos governantes organizados pelas facções islâmicas mais extremas: os partidos salafistas no Egito e os grupos pró-al-Qaeda na Líbia.

A escolha de alvos norte-americanos obviamente não foi por acaso. Os ataques à embaixada e ao consulado demonstram que o antiamericanismo ainda é um potente ponto de convergência para o descontentamento popular no mundo islâmico.

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Assim como não surtiu quase nenhum efeito o pedido de desculpas do próprio Rushdie, é igualmente inútil agir como se uma política mais restritiva por parte do YouTube pudesse nos salvado de todo um outono de inquietação política.

Tradução: Adriano Scandolara