Venezuelanos procuram ajuda em Boa Vista, capital de Roraima| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

São 7:30 da manhã de uma manhã recente e já há fila do lado de fora do Convento de Nossa Senhora da Consolação. Ela se estende além da cerca verde-limão e vira a esquina. Centenas de pessoas, na maioria homens, foram buscar o pão e o suco que as freiras oferecem no café da manhã em seis da semana. 

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É uma situação cada vez mais comum em Roraima, o estado mais pobre e de menor população no Brasil. À medida que as crises humanitárias, econômicas e políticas se acentuam no país vizinho, dezenas de milhares de venezuelanos entraram no Brasil em busca de atendimento médico, alimentação e oportunidades. 

"As coisas na Venezuela mudaram", diz Jesús Quispe, um ex-membro das forças armadas da Venezuela, enquanto se prepara para o café da manhã. “Na Venezuela, você sai para 'matar um tigre', por assim dizer, para poder comer um prato de comida, e não foi o suficiente”, diz ele, referindo-se a fazer pequenos trabalhos ou trabalhos informais, como limpar as calhas de um vizinho. “Aqui, você ‘mata um tigre pequeno’ e tem dinheiro suficiente para enviar para sua família na Venezuela”. 

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Quispe chegou a Boa Vista há três meses e desde então dorme no chão perto da rodoviária da cidade. Muitas calçadas, pontos de ônibus e frentes de lojas se transformam à noite em extensões de corpos dormindo em caixas de papelão desmontadas. É uma situação que muitos moradores dizem que provoca compaixão, mas também traz questionamentos sobre a situação de Roraima, uma parte frequentemente negligenciada do Brasil. 

Pressão social

Funcionários públicos estimam que a população da capital do estado aumentou mais de 10% devido ao desembarque de venezuelanos nos últimos dois anos. Isto está tensionando a economia local e afetando as percepções de segurança, apontam muitos moradores locais. 

Com a crescente pressão sobre os serviços públicos e a sensação de que o estado foi deixado para cuidar dos refugiados por conta própria, a fronteira com a Venezuela foi abruptamente fechada neste mês. Autoridades estaduais pediram ao governo federal para reembolsá-lo pelos US$ 49 milhões que já gastaram com o apoio de refugiados, e pediram ajuda para criar uma resposta humanitária mais organizada. 

O fechamento da fronteira foi derrubado por uma ministra do Supremo Tribunal Federal na mesma semana em que entrou em vigor, mas a medida ressaltou os sentimentos de medo, desinformação e falta de preparação que varreram cidades do mundo à medida que as populações de migrantes crescem. 

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Pode ser fácil dizer que o movimento de Roraima foi protecionista ou é de coração frio. Mas entre os moradores e funcionários públicos neste canto remoto do Brasil - onde a renda mensal gira em torno de US$ 250, quase a metade da média nacional - o desejo de ajudar está presente. Organizações não governamentais locais e pessoas estão intensificando esforços para oferecer alojamento, alimentação e aulas de português. Alguns observadores dizem que o fechamento da fronteira foi um pedido público de ajuda. 

 Os acordos internacionais exigem que os refugiados sejam acolhidos e abrigados com dignidade. "Mas também existe o direito dos moradores locais de não perder seu padrão de vida", diz a prefeita Teresa Surita. "É uma situação muito difícil de gerenciar." 

Fora do centro da cidade, os venezuelanos se tornaram frequentes nos cruzamentos, onde vendem doces, garrafas de água gelada e picolés. Mais de 16 mil venezuelanos chegaram apenas no primeiro semestre de 2018. Boa Vista está construindo 50 novas salas de aula para acomodar estudantes venezuelanos, e cerca de 65% das visitas a pronto-socorros, no mês passado, foram feitas por refugiados venezuelanos. 

Ressentimento crescente

Se abundam os exemplos de brasileiros que levam os venezuelanos para suas casas ou fornecem alimentos, o ressentimento também cresceu. À medida que os refugiados procuram atendimento médico, emprego e escolas em um estado de cerca 500 mil pessoas, alguns moradores veem sua subsistência ameaçada. Outros enxergam um aumento no crime e culpam os refugiados. 

Em uma tarde recente, a clínica de atendimento de urgência perto da universidade federal tinha meia dúzia de pessoas esperando. Paula Lopes Santos, estudante de artesanato e fisioterapeuta, é uma delas. "Muitas pessoas perderam o emprego porque o trabalho deles é muito mais barato", diz . “As pessoas exploram [os refugiados]. Você teria de receber R$ 100 por um trabalho e os venezuelanos aceitam R$ 30. Isto prejudica os moradores locais.” 

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Mas a situação na Venezuela, onde a desnutrição infantil está aumentando e até os cuidados médicos mais básicos são escassos, mostra que aqueles que chegam a Roraima estão “em situação de extrema vulnerabilidade”, diz Daniela Campos, coordenadora do Departamento de Epidemiologia do estado.

Ela afirma que a situação de emergência humanitária da Venezuela está afetando Roraima. E aponta para um recente surto de sarampo, doença que já tinha sido erradicada no Brasil. 

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Alguns argumentam que o Brasil precisa colocar os “brasileiros em primeiro lugar”, em vez de atender aos venezuelanos. A prefeitura de Boa Vista fechou uma praça na qual cerca de 600 refugiados haviam acampado no início deste ano. Os críticos disseram que era uma tentativa de esconder o problema. 

A ação foi criticada por ativistas de direitos humanos, mas ganhou popularidade entre moradores. Em um ano eleitoral, respostas duras como esta podem ser atraentes. Fechar a fronteira neste mês permitiu que o governador, que está disputando a reeleição, parecesse firme em relação à migração. 

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A incapacidade do governo em responder rápida e adequadamente às necessidades básicas da população refugiadas permitiu que os políticos usem "bodes expiatórios", diz João Carlos Jarochinski Silva, professor de relações internacionais da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Segundo ele, está se criando uma "ideia excludente de nacionalismo", onde a cultura local é vista como algo que precisa ser preservada e protegida. 

 Falta ajuda federal

O governo federal ainda não ofereceu ajuda adicional após o breve fechamento da fronteira. No final de fevereiro, o governo intensificou seus esforços depois que o presidente Michel Temer visitou Roraima. Pouco tempo depois, o exército chegou para construir e administrar abrigos para refugiados em Boa Vista e ao longo da fronteira. 

Temer também emitiu uma ordem no início deste ano para "interiorizar" as chegadas venezuelanas, levando as pessoas de Roraima para outras capitais. Até agora, apenas 820 refugiados foram realocados, deixando Roraima com a maior parte da responsabilidade. 

“Temos um grande número de organizações que estão ajudando, é verdade”, diz Frederico Linhares, secretário estadual. "Mas não temos nenhuma ajuda real do governo federal. Esta é uma questão que preocupa todos aqui, porque isto é uma questão federal.” 

Oportunidade 

Ainda assim, alguns veem este momento como uma oportunidade para Roraima - e possivelmente para o país - dar a atenção necessária a questões de longa data que afetam tanto moradores locais os recém-chegados. No ano passado, por exemplo, a Human Rights Watch identificou Roraima como o estado brasileiro com os níveis mais altos de violência contra as mulheres. 

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“As migrantes do sexo feminino costumam ser especialmente suscetíveis, o que está ajudando a aumentar a conscientização sobre o problema ”, diz Julia Camargo, que leciona relações internacionais na UFRR. 

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A professora foi uma das organizadoras de uma campanha em 2017 chamada “Elas somos nós”, que teve por objetivo destacar experiências compartilhadas de violência entre mulheres locais e refugiadas e criar solidariedade. 

Se uma mulher também é "migrante, há camadas sobrepostas de vulnerabilidade", diz ela. "Se vemos isto como uma oportunidade de encarar mais estes problemas e pensar conjuntamente em soluções, então, com a bagagem cultural que a imigração traz, também pode nos trazer soluções para problemas que já tínhamos."

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