Hiroko Sakakibara era apenas uma garotinha quando agentes norte-coreanos foram à casa de seu pai tentando vender a ele um sonho: um paraíso na terra de seus ancestrais. Um sonho socialista se tornará realidade, foi dito a eles no começo da década de 1960. Tudo o que você precisa – trabalho, casa, roupas, cuidados de saúde – serão garantidos pelo estado.
“Por ser pequena, não pude me juntar à conversa, mas eu conseguia ouvir eles falando”, conta. “Eu disse ao meu pai: ‘Vamos, papai, vamos’”.
Ao todo, mais de 93 mil pessoas – grande parte coreanos cuja cidadania japonesa havia sido anulada após a Segunda Guerra Mundial – deixaram o Japão entre 1959 e 1984, atraídos pela promessa de uma nova vida na República Popular Democrática da Coreia, durante a Guerra Fria. As pessoas de etnia coreana, conhecidos no Japão como zainichi, se juntaram a milhares de cônjuges e filhos japoneses.
Mas a realidade que encontraram ao chegar no país norte-coreano era bem diferente: discriminação, pobreza acentuada e ausência de direitos básicos.
Agora, cinco zainichi, que passaram décadas na Coreia do Norte antes de conseguiram fugir da ditadura para o Japão, estão tentando processar o governo norte-coreano em um tribunal japonês, pedindo indenização pelas mentiras que lhes foram ditas e pelos maus-tratos que sofreram. Além disso, exigem que seus parentes tenham o direito de voltar ao Japão.
O caso dos zainichi não é prioridade para o governo japonês. Eles são classificados como “sequestrados”, um número muito menor do que o verdadeiro de cidadãos japoneses capturados por agentes norte-coreanos nos anos 1970 e 1980. A história deles se tornou uma espécie de obsessão nacional e um grande obstáculo para qualquer tentativa de reaproximação entre Tóquio e Pyongyang, a capital da Coreia do Norte.
Mas a história dos zainichi é uma poderosa prova das catástrofes humanitárias que aconteceram na Coreia do Norte nas últimas seis décadas, e como o regime de Kim Jong-un enfrenta recriminação ao tentar dialogar com o Ocidente e aliados. O processo dos coreanos também reivindica o fato de que políticas culturais no Japão e em outros lugares do leste da Ásia podem rebaixar as minorias étnicas ao status de subclasse.
Segundo Hiroko, seus pais, ambos coreanos, encontraram muitos desafios durante a vida no Japão. O pai dela lutou para encontrar um trabalho regular e sua mãe sofreu um derrame. Hiroko Sakakibara – agora com 68 anos – lembra que ficaba envergonhada na escola porque não tinha dinheiro para o lanche.
A viagem
Em maio de 1961, a família embarcou em um navio soviético com destino ao porto norte-coreano de Chongjin. Ela lembra perfeitamente das propagandas mostradas à família antes que deixasse o Japão: belas garotas colhendo maçãs rosadas de uma árvore, imagens bucólicas e paisagens urbanas modernas.
Mas uma vez a bordo do navio, vigiado por soldados soviéticos, as dúvidas começaram a surgir. “A comida era terrível e as maçãs eram murchas”, lembra. Quando chegaram ao porto, eles perceberam que tinham cometido um grande erro. O que encontraram foi uma cidade cinzenta, pobre e monótona, além de pessoas desnutridas e mal vestidas. Os adultos usavam roupas iguais, escuras e cinzentas, e algumas crianças não tinham calçados e, até mesmo, calças.
“Por que é tão diferente do que eu havia imaginado? Fiquei tão desapontada”, Hiroko lembra de ter se perguntado, quando tinha 11 anos, e ao seu redor os adultos se questionavam a mesma coisa.
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“Disseram para nós que seria um paraíso, mas isso, definitivamente, não é um”, disse Hiroko Saito, uma mulher japonesa que havia ido para lá com seu marido coreano e sua filha de um ano de idade. “Todo mundo começou a chorar: ‘Me tirem daqui, me levem para casa’”. A eles foi dito que poderiam viver onde quisessem, trabalhar com o que quisessem. E isso tudo era mentira.
No processo judicial, as famílias alegam que muitas pessoas acabaram presas em campos de trabalho ou minas de carvão. Alguns morreram de desnutrição e doenças, enquanto outros conseguiram sobreviver vendendo o que haviam trazido do Japão, ou por meio do dinheiro que parentes enviaram a eles.
Hiroko conta que seu pai trabalhava com construção civil no Japão, mas foi enviado para o campo e acabou tendo dificuldade para aprender agricultura manual. Incapaz de cumprir as demandas, ele sofreu um colapso mental e foi internado em um hospital para doentes mentais, onde morreu em 1964. Na escola, ela sofria bullying por ter crescido no Japão.
Ajuda japonesa
Segundo Tessa Morris-Suzuki, professora na Universidade Nacional da Austrália e autora de “Exodus to Norte Korea: Shadows From Japan’s Cold War” (Êxodo para a Coreia do Norte: Sombras da Guerra Fria no Japão, em tradução livre), no Japão, pessoas de etnia coreana eram vistas como politicamente suspeitas – muitos eram de esquerda- e uma ameaça ao bem-estar social. Eles também tiveram suas cidadanias japonesas anuladas após a Segunda Guerra Mundial, e o governo apoiou, de maneira silenciosa, a ideia de mandá-los para casa ou para a Coreia do Norte.
A campanha de proselitismo foi realizada pela Associação Geral de Residentes Coreanos no Japão, ou Chongryon, uma organização pró-Coreia do Norte. A Cruz Vermelha Japonesa e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha também ajudaram na ação.
Uma vez na Coreia do Norte, muitos imigrantes tentaram, através de cartas, impedir que seus parentes se juntassem a eles. Apesar de a maior parte ter sido censurada, alguns conseguiram escrever mensagens atrás dos selos ou usavam códigos, como escrever em tinta, se a carta fosse verdade, e a lápis, se fosse mentira.
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Arquivos históricos revelam que o Japão sabia do que acontecia. De acordo com Morris-Suzuki, embora o país tenha dito à Grã-Bretanha, no começo dos anos 1960, que a condição dos imigrantes era muito difícil, a nação japonesa continuava apoiando a campanha para mandá-los para a Coreia do Norte.
“O governo japonês deveria reconhecer que foi conivente com esse grave erro histórico, que as vítimas ainda sofrem, e resolver a situação oferecendo suporte a elas”, disse Kanae Doi, diretor da Human Rights Watch no Japão.
Sakakibara é grata ao Japão por ter permitido sua volta. Tudo o que ela realmente quer é um pedido de desculpa das pessoas que iludiram sua família. “Todo mundo comete erros, mas eles só sabem dizer: ‘Nos perdoem, nós não tivemos a intenção, mas acabou acontecendo isso’. Eles não vão reconhecer a culpa, e isso me deixa muito brava”, disse.