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Liberdade religiosa

China prende muçulmanos em campos de reeducação

Pedestres caminham perto de mesquita em Kashgar, no Oeste na China, onde as autoridades estão encaminhando muçulmanos a centros de reeducação | GILLES SABRIE/NYT
Pedestres caminham perto de mesquita em Kashgar, no Oeste na China, onde as autoridades estão encaminhando muçulmanos a centros de reeducação (Foto: GILLES SABRIE/NYT)

À beira de um deserto no extremo oeste da China, atrás de uma cerca de arame farpado, fica um prédio imponente. Grandes personagens vermelhos na fachada exortam as pessoas a aprender chinês, estudar direito e adquirir habilidades profissionais. Os guardas deixam claro que os visitantes não são bem-vindos.

No interior, centenas de muçulmanos uigures passam seus dias em um programa de doutrinação de alta pressão, onde são forçados a ouvir palestras, cantar hinos elogiando o Partido Comunista chinês e escrever ensaios de "autocrítica", segundo detentos que foram libertados.  O objetivo é livrá-los da devoção ao Islã. 

 Abdusalam Muhemet, de 41 anos, contou que a polícia o deteve por recitar um verso do Alcorão em um funeral. Depois de dois meses em um acampamento nas proximidades, ele e mais de 30 outros foram obrigados a renunciar a suas vidas passadas. Muhemet disse que fingiu ter aceitado, mas que, na realidade, ficou muito revoltado. "Aquele não é um lugar para se livrar do extremismo. É um lugar que vai gerar sentimentos de vingança e apagar a identidade uigur", afirmou. 

China tenta restringir islamismo

 Esse campo próximo de Hotan, uma antiga cidade oásis no Deserto de Taklamakan, é um das centenas que os chineses construíram nos últimos anos. Faz parte de uma campanha de grande escala e ferocidade que prende centenas de milhares de muçulmanos chineses, por períodos que se estendem de semanas a meses, no que os críticos descrevem como uma lavagem cerebral, normalmente sem acusações criminais. 

Embora limitado à região de Xinjiang, no oeste da China, este é o programa de internação mais abrangente do país desde a era Mao (1949-76) – e o alvo de um crescente coro de críticas internacionais. 

 Há décadas, a China tem procurado restringir a prática do Islã e manter um controle estrito em Xinjiang, uma região quase tão grande quanto o Alasca, onde mais da metade da população de 24 milhões pertence a grupos étnicos minoritários muçulmanos. A maioria é de uigures, cuja religião, língua e cultura, juntamente com uma história de movimentos de independência e resistência ao domínio chinês, há muito enervam Pequim. 

 Depois que uma série de ataques violentos contra o governo alcançou o auge em 2014, Xi Jinping, chefe do Partido Comunista, intensificou a repressão, orquestrando uma tentativa implacável de transformar os uigures étnicos e outras minorias muçulmanas em cidadãos leais e apoiadores do partido. "Xinjiang está em um período ativo de atividades terroristas, de luta intensa contra o separatismo e de uma intervenção dolorosa para sanar o problema", disse Xi às autoridades, de acordo com reportagens da mídia estatal em 2017. 

Forma de atuação

 Além das detenções em massa, as autoridades intensificaram o uso de informantes e expandiram a vigilância policial, até mesmo instalando câmeras nas casas de algumas pessoas. Ativistas e especialistas em direitos humanos dizem que a campanha traumatizou a sociedade uigur, deixando comunidades e famílias fraturadas. 

 "A intervenção na vida cotidiana é quase total agora", afirma Michael Clarke, especialista em Xinjiang na Universidade Nacional Australiana, em Canberra, capital da Austrália. "Você tem uma identidade étnica, a identidade uigur em particular, sendo apontada como detentora de um tipo de patologia." 

 A China negou categoricamente relatos de abusos em Xinjiang. Em uma reunião de um painel da ONU em Genebra no mês passado, seu representante disse que não opera campos de reeducação e descreveu as instalações em questão como instituições corretivas leves que fornecem treinamento profissional. "Não há detenção arbitrária", afirmou Hu Lianhe, funcionário político de Xinjiang, ao Comitê da ONU sobre a Eliminação da Discriminação Racial. "Não existem centros de reeducação." 

 O comitê pressionou Pequim a divulgar quantas pessoas foram detidas e a libertá-las, mas o Ministério de Relações Exteriores da China rejeitou a exigência como "sem base factual" e disse que as medidas de segurança são comparáveis às de outros países. 

Documentos revelam rede de campos

 A defesa do governo, no entanto, é contrariada por evidências contundentes, incluindo diretivas oficiais, estudos, reportagens e planos de construção que apareceram online, assim como relatos de testemunhas e de um número cada vez maior de ex-detentos que fugiram para países como a Turquia e o Cazaquistão. Até mesmo documentos do governo descrevem uma vasta rede de campos – geralmente chamados de centros de "transformação através da educação" – que se expandiram sem debate público, autoridade legislativa específica ou qualquer sistema de apelação para os detidos. 

 O New York Times entrevistou quatro ex-detentos recentes de Xinjiang que descreveram abuso físico e verbal por parte de guardas; rotinas de cantos, palestras e reuniões de autocrítica; e a angustiante ansiedade de não saber quando seriam libertados. Seus relatos foram repetidos em entrevistas com mais de uma dezena de uigures que possuem parentes nos campos ou que desapareceram, muitos dos quais falaram sob condição de anonimato para evitar retaliação do governo. 

 O Times também descobriu relatórios online escritos por equipes de funcionários chineses que foram designados para monitorar famílias com parentes detidos e um estudo de 2017 que mostra que funcionários de algumas partes de Xinjiang estavam enviando indiscriminadamente uigures para os campos apenas para cumprir cotas numéricas. 

 O estudo, feito pela pesquisadora Qiu Yuanyuan, da Escola do Partido de Xinjiang, onde os funcionários são treinados, alertou que as detenções podem sair pela culatra e estimular o radicalismo. "A definição imprudente de metas quantitativas para a transformação através da educação foi erroneamente usada" em algumas áreas, escreveu ela. "Os alvos são imprecisos e o escopo está em expansão". 

China quer “desradicalizar” supostos extremistas

Em 2017, o governo de Xinjiang emitiu regras de "desradicalização" que deram autorizações vagas para a organização dos campos, e muitos municípios agora administram vários deles, de acordo com documentos do governo, e recebem propostas de empreiteiras para construí-los. 

Em documentos oficiais, as autoridades locais às vezes comparam os internos a pacientes que precisam de isolamento e intervenções de emergência. "Qualquer pessoa infectada com um 'vírus' ideológico deve ser rapidamente enviada para o 'atendimento residencial' das aulas de transformação pela educação antes do surgimento da doença", explicava um documento divulgado por representantes do partido em Hotan. 

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 O número de uigures, bem como de cazaques e de outras minorias muçulmanas, que foram detidos nos campos não é claro. As estimativas variam de centenas de milhares a talvez um milhão, com grupos uigures exilados dizendo que o número é ainda maior. 

 O governo chinês diz estar ganhando uma guerra contra o extremismo islâmico e o separatismo, a quem atribui ataques que mataram centenas de pessoas nos últimos anos. As informações sobre esses surtos de violência são censuradas e incompletas, mas os incidentes parecem ter caído acentuadamente desde 2014. 

 Ainda assim, muitos que emergiram do programa de doutrinação dizem que eles só pioraram as atitudes das pessoas contra Pequim. "Foi absolutamente inútil", afirmou o empresário cazaque Omurbek Eli sobre seu tempo em um desses campos em 2017. "O resultado será o oposto. As pessoas se tornarão ainda mais resistentes à influência chinesa." 

 

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