A noite caía no centro do Cairo quando centenas de partidários do presidente deposto Mohamed Mursi decidiram marchar por uma das pontes que chega à Praça Tahrir - onde se concentravam milhares de opositores ao regime islamistas, que ainda celebravam o golpe militar no Egito. Foi a receita para transformar em violência a "Sexta-feira da Rejeição".
Se durante todo o dia milhares de simpatizantes da Irmandade Muçulmana protestaram em paz pelo retorno do presidente, à noite, grupos pró e anti-Mursi se enfrentaram nas ruas de uma capital dividida e em outras cidades egípcias.
O Ministério da Saúde contabilizou ao menos 30 mortos e 300 feridos em todo o país. No Cairo, 17 pessoas morreram, e a tensão agravou-se, ainda, diante de dois outros fatores: o "sumiço" do presidente deposto - supostamente detido pelos militares na sede da Guarda Republicana - e a presença inexistente da polícia e mesmo das Forças Armadas diante da violência.
Testemunhas contam que ao menos cinco partidários da Irmandade foram mortos - baleados. Alguns tanques do Exército foram deslocados para o centro da capital, mas apenas observaram. A confusão começou com a libertação de integrantes da cúpula da Irmandade, detidos logo após o golpe. O líder supremo do grupo, Mohammed Badie, uniu-se rapidamente a dezenas de milhares de islamistas que promoviam um ato no bairro de Cidade Nasser. Ele pediu contenção do Exército.
"Vamos completar a revolução. Não pode haver concessão sobre nosso presidente Mohamed Mursi, ou será com nossas vidas. Não haverá qualquer negociação com ninguém enquanto nosso presidente estiver preso", desafiou Badie, enquanto helicópteros da Força Aérea sobrevoavam a região, em demonstração de força.
Lembrança da 'Batalha dos camelos'
Segundo a agência estatal Mena, à noite foi a vez de o empresário Khairat al-Shater ser preso. Ele é o vice de Badie e era a primeira opção da Irmandade Muçulmana nas eleições, tendo sido impedido de concorrer e abrindo caminho para Mursi. O líder salafista e ex-candidato presidencial Hazem Salah Abu Ismail também teria sido detido. Mas os islamistas estavam determinados. Muitos apontavam o dedo indicador para os helicópteros.
"Colocamos o nosso dedo na eleição. Nós não podemos tirar nossos dedos e colocar outros", queixou-se um senhor, referindo-se ao fato de que, no Egito, os eleitores têm o indicador mergulhado em tinta azul como prova de que votaram.
Jovens levavam cartazes criticando o chefe do Supremo Conselho das Forças Armadas (Scaf), general Abdel Fattah al-Sissi, responsabilizado pelo golpe. "O general-ladrão Sissi roubou o meu voto" e "O Egito está sob a sola de um golpe militar" eram frases comuns.
"Democracia significa votar, significa o voto do povo. Os militares roubaram o voto do povo", disse o vendedor Mohamed al-Guibary, de 26 anos, que carregava um dos cartazes. "Quantas pessoas são contra o (presidente François) Hollande na França? Muitas. E quantas pedem para Hollande sair e o Exército entrar? Ninguém, porque eles têm democracia. Nós queremos levar este país para o futuro, e o futuro é democracia".
A confusão começou quando uma parte dos islamistas - centenas deles - começou a marchar em direção à Praça Tahrir, passando pelo complexo de Maspero, sede da TV estatal egípcia, a menos de um quilômetro dali. Os dois lados pareciam prontos para o confronto: partidários de Mursi teriam usado armas, segundo relatos. Grupos anti-islamistas, por sua vez, quebraram blocos de concreto na rua para atirar pedras, além de usar bastões, que também eram vistos em abundância no lado rival.
O embate explodiu na Ponte 6 de Outubro, uma das mais importantes vias do Cairo. Bombas de fabricação caseira provocaram correria, e um carro foi incendiado. Fogos de artifício foram usados como arma, iluminando o céu já escuro da capital. A batalha campal se arrastou por pouco mais de duas horas, sendo dispersa com a aproximação de blindados das Forças Armadas - e clamores de vitória dos dois lados, que garantiam ter "expulsado" o inimigo.
Muitos compararam o combate à chamada "batalha de camelos" de 2011, ocorrida a alguns metros dali, quando criminosos em camelos e cavalos, a mando do regime do ditador Hosni Mubarak, atacaram uma multidão de opositores que protestava na Praca Tahrir. Onze pessoas morreram e mais de 600 ficaram feridas no episódio.
No fim da noite, tanques patrulhavam o prédio da TV estatal, e as ruas da região pareciam cenário de guerra, com pedras, manchas de sangue e sujeira por toda parte.
Houve confrontos violentos em Assuã, Ismaília e Suez. Na cidade costeira de Alexandria, choques entre laicos favoráveis ao golpe e islamistas partidários de Mursi mataram 17 pessoas. E na Península do Sinai, cinco policiais morreram num ataque de atiradores islamistas na cidade de al-Arish, próximo à fronteira com a Faixa de Gaza, e granadas de propulsão foram lançadas contra o aeroporto de Rafah - reforçando os temores da ação de grupos jihadistas no deserto.
Câmara Alta do Parlamento é dissolvida
A clara ausência da polícia se fez notar e despertou rumores de que os confrontos possam ter sido planejados - sobretudo diante do silêncio das autoproclamadas novas autoridades. Pela manhã, o presidente interino Adly Mansour determinou a dissolução do Conselho da Shura, a câmara alta do Parlamento, que tem 270 cadeiras e era, desde o ano passado, controlado pela Irmandade Muçulmana. Era o único órgão político ainda ativo no país.
Mansour também nomeou um novo chefe da Inteligência, Mohamed Ahmed Farid, sob fortes especulações de que os principais nomes do novo gabinete tecnocrata podem ser anunciados ainda no fim de semana - e entre eles, o prêmio Nobel da Paz Mohamed ElBaradei como primeiro-ministro. Ontem, os partidos progressistas de esquerda defenderam que a transição seja rápida. As parcelas laicas da população ainda se recusam a chamar essa revolução de golpe.
"Essa ação levou à reconciliação entre o povo e o Exército depois de muito tempo de estranhamento. As Forças Armadas não querem se manter no poder. Concordamos com um mapa do caminho com uma nova Constituição, traçada por um comitê para rever os artigos polêmicos e submetida a um referendo. Depois, virá a eleição presidencial e, somente aí, a parlamentar", argumentou Hamdeen Sabahi, líder do movimento Atual Popular, que ficou em terceiro lugar no pleito que elegeu Mursi.
As incertezas, porém, continuam ecoando longe das fronteiras egípcias. A União Africana (UA) suspendeu o país da organização "até a restauração da ordem constitucional". O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, esquivou-se de polêmicas. Mas pediu que as forças de segurança protejam manifestantes e impeçam a violência.
"O caminho a seguir deve ser determinado pelo próprio povo do Egito. Para que esse processo tenha sucesso, não há lugar para retaliações ou para a exclusão de nenhum ator majoritário ou minoritário" disse o porta-voz de Ban.