Nos últimos anos, a esquerda venceu várias eleições presidenciais na América Latina, um fenômeno que recebeu o apelido de “Onda Rosa”. Entretanto, mal começou e essa tendência já dá sinais de grande desgaste – prova disso é a dificuldade que esses governos enfrentam para aprovar as reformas que estão propondo.
O caso mais recente ocorreu no Chile, onde a Câmara dos Deputados rejeitou na semana passada uma proposta de reforma tributária apresentada pelo governo de Gabriel Boric.
O presidente esquerdista planejava arrecadar 3,6% do PIB em quatro anos por meio da reestruturação do imposto de renda, redução de isenções fiscais, aplicação de um novo royalty da mineração e correções fiscais, com o objetivo de financiar sua agenda ambiental e social.
Dois dias depois, Boric anunciou a troca de cinco ministros, repetindo uma reestruturação do gabinete que já havia ocorrido em setembro, depois que a população rejeitou em referendo uma proposta de nova Constituição para o Chile.
Considerado “excessivamente progressista” pela revista inglesa The Economist, o texto havia sido elaborado por uma comissão constituinte de maioria esquerdista eleita antes do atual presidente – porém, Boric apoiava a reforma. Um novo processo constituinte foi iniciado posteriormente.
Na Colômbia, o governo Gustavo Petro conseguiu aprovar em novembro uma reforma tributária que aumentou impostos para os que ganham mais, mas suas propostas de reformas sanitária, trabalhista e da previdência são alvo de grandes protestos da população e geram até divergências internas.
No final de fevereiro, o então ministro da Educação, Alejandro Gaviria, foi demitido após criticar a reforma da saúde, que visa reforçar a atenção primária e levar cuidados médicos aos chamados “territórios abandonados”.
Uma carta assinada por Gaviria e outros dois ministros (que seguem no governo), que foi vazada à imprensa, havia apontado problemas na proposta de reforma da saúde, de ordem constitucional e sobre seu impacto nas finanças públicas, entre outros.
O caso mais extremo de fracasso da esquerda na região ao tentar amplas reformas foi o do ex-presidente peruano Pedro Castillo.
Em dezembro, ele tentou um golpe de Estado, ao anunciar a dissolução do Congresso, a instauração de um “governo de emergência” e a convocação de eleições para um novo Legislativo, com poderes constituintes, que deveria aprovar uma nova Carta Magna dentro de no máximo nove meses. Castillo foi destituído e preso no mesmo dia.
Em 2020, o Senado argentino aprovou uma reforma judicial proposta pelo presidente Alberto Fernández que criaria dezenas de novas varas federais, com o objetivo principal de diluir o poder dos juízes sediados na avenida Comodoro Py, em Buenos Aires, responsáveis por casos de corrupção.
Apenas na capital, seriam 23 novas varas federais. Porém, o projeto não avançou na Câmara e perdeu o status parlamentar.
Além da reforma tributária na Colômbia, uma rara vitória recente da esquerda nessa área foi uma reforma promovida pelo presidente Andrés Manuel López Obrador que comprometerá o funcionamento do órgão eleitoral do México, ao reduzir seu orçamento e modificar suas atribuições. Aprovada pelo Legislativo mexicano, a medida está sendo contestada na Suprema Corte.
Razões
Essa dificuldade da esquerda latino-americana para emplacar sua agenda de reformas tem três explicações principais.
A primeira é o desgaste desses governos: sob Boric e Fernández, Chile e Argentina enfrentam alta inflação (extrema, no caso argentino) e desaceleração econômica, e Petro é criticado pelas suas negociações de paz com as guerrilhas e seu filho está sendo investigado devido a uma denúncia de que teria recebido dinheiro de um traficante de drogas para a campanha eleitoral do pai.
A segunda explicação é o próprio teor das propostas de reforma, consideradas em muitos casos radicais: analistas consideram que esses projetos estão sendo apresentados de forma apressada (Boric recém completou um ano de governo, e Petro tomou posse em agosto) e sem levar em conta pontos de vista divergentes, especialmente do setor produtivo.
“É um sinal antes de tudo da teimosia do governo, que não está disposto a realmente sentar e conversar; na Comissão de Finanças, durante um longo período não houve praticamente qualquer flexibilidade”, disse o deputado conservador da União Democrática Independente (UDI), Juan Antonio Coloma, logo após a rejeição à reforma tributária no Chile.
Christian Aste, presidente da Comissão Tributária da Câmara Nacional de Comércio do Chile (CNC), afirmou em entrevista que uma reforma tributária no país exigiria “consenso de todos os setores”.
“Na nossa opinião, o país precisa de estabilidade, principalmente se quisermos estimular o investimento, por isso as regras não podem ser alteradas toda vez que um novo governo toma posse”, criticou.
Em entrevista ao El País, o economista colombiano Jorge Restrepo citou o terceiro fator que vem impedindo a esquerda de aprovar suas agendas: a falta de apoio suficiente no Parlamento. “Percebemos que este governo [Petro] tem menos poder do que se pensava. As reformas vão ser bem menos radicais e menos delas serão aprovadas”, projetou.
Em artigo no jornal colombiano El Espectador, os colunistas Mauricio Cárdenas e Allison Benson Hernández alertaram que o excesso de proposição de reformas gera instabilidade e pode afastar investimentos.
“A avalanche de reformas tem gerado incertezas que podem paralisar os investimentos no país [Colômbia] justamente no momento em que eles são mais necessários. A incerteza tem se refletido de várias formas e uma delas é a desvalorização do peso, muito superior à [das moedas] de outros países latino-americanos, inclusive aqueles com governos de esquerda”, escreveram.
“No contexto de incerteza que as reformas geraram, a única coisa que parece certa é que elas geram enormes riscos fiscais, num momento em que, além disso, o governo travou importantes setores geradores de receitas fiscais, como os de mineração e energia”, destacaram Cárdenas e Hernández.
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