Ross Douthat, colunista do New York Times, escreveu o seguinte: "O que estamos vendo se desenrolar no Oriente Médio pós-Primavera Árabe é o tipo de luta pelo poder que frequentemente acontece após uma revolução: entre as forças seculares e fundamentalistas em Benghazi, entre a Fraternidade Muçulmana e os seus rivais ultraislamistas no Cairo, com forças semelhantes lutando pelo poder da Tunísia ao Iêmen, até à diáspora muçulmana na Europa". O senhor concorda com essa afirmação?
Concordo em parte. A luta por poder é característica intrínseca ao jogo político, e mais ainda em contextos de relativa liberdade política. Após a derrocada das longevas autocracias no mundo árabe, é natural que se observem disputas partidárias e sectárias que estiveram adormecidas por décadas, ou cujas repercussões foram, historicamente, reprimidas pelos ditadores. Mas as relações não são dicotômicas como sugere o comentário do colunista no New York Times; envolvem, em geral, forças variadas, dos seculares aos fundamentalistas, mas com vários tons intermediários. Todas elas disputam a lealdade de amplas massas que tampouco se filiam, de maneira óbvia, a qualquer uma das correntes do espectro político. A população em geral que, aliás, tem sido um ator relevante nos desdobramentos da chamada Primavera Árabe representa uma síntese entre a busca por liberdades, prosperidade material, e a afirmação da fé religiosa. Tais imbricações podem, claro, decorrer de revoluções, embora também ocorram em contextos de democracia já madura.
O filme norte-americano, "A Inocência dos Muçulmanos", teria sido usado como pretexto para as revoltas islâmicas? (Revoltas essas que aconteceriam de qualquer forma, cedo ou tarde?)
Em primeiro lugar, o fato de o filme ter sido produzido nos Estados Unidos não o vincula, de modo algum, ao governo ou até mesmo à população norte-americana. Há fortes indícios de que a produção de péssimo gosto, aliás tenha sido idealizada e realizada por um egípcio, cristão copta (minoria religiosa daquele país), radicado nos EUA. A crítica à religião islâmica, sobretudo no tom utilizado, que ridiculariza a imagem do Profeta Maomé, já seria motivação o bastante para a insatisfação dos muçulmanos ao redor do mundo. Alguns anos atrás, uma charge publicada em um jornal dinamarquês, satirizando o Profeta e associando-o ao terrorismo, originou uma série de protestos no mundo islâmico. Não falaria, portanto, em pretexto, como se algo já estivesse sendo planejado, mas sim em um elemento que desencadeou reações em série entre populações que são particularmente sensíveis a questões religiosas. Vale lembrar que o anti-americanismo evidenciado pelos recentes acontecimentos não é novo e que fatores como a ocupação do Iraque e o apoio a Israel potencializam esse sentimento na região.
Por outro lado, a violência de alguns episódios, em particular naquele que resultou na morte de quatro diplomatas norte-americanos, parece ter sido empreendida por grupos que se aproveitaram da instabilidade momentânea para atingir objetivos políticos (ligados à presença ocidental na região) que, a princípio, nada têm a ver com o filme ou com os protestos que se seguiram.
O governo norte-americano, por hora, administra a crise como se o filme fosse a causa das revoltas, discutindo os limites da liberdade de expressão e a responsabilidade do Google (dono do YouTube) na história. Que consequências pode ter essa postura?
Trata-se de um erro de avaliação grave. É evidente que se deve discutir, no âmbito público, as extrapolações à liberdade de expressão e as consequências nefastas de mensagens que incitem o ódio ou a intolerância, em qualquer nível. Mas esse me parece um debate mais complexo, mais longo, e que assume um caráter quase intangível em tempos de internet, de YouTube e de redes sociais. O problema de fundo das recentes manifestações está relacionado a uma situação política que, em grande medida, independe da divulgação do filme ou da islamofobia manifesta na atitude de alguns cidadãos, como aquele pastor da Flórida que queimou um exemplar do Corão. Essa indisposição generalizada, traduzida em protestos, manifestações e ondas de violência, relaciona-se com a rejeição veemente da presença estrangeira no mundo árabe.
Durante muito tempo, essa presença esteve ligada a Israel (entendida, entre muitos árabes, como uma nação cujo estabelecimento acabou por usurpar terras árabes/palestinas e continuamente causar o sofrimento do povo palestino) e às potências que apoiavam o Estado judeu. Após a Guerra do Golfo, em 1991, mas particularmente depois da invasão e ocupação do Iraque, em 2003, o crescimento do antiamericanismo ao redor do mundo árabe é patente e resulta, em grande medida, da rejeição à presença estrangeira na região.
Na sua opinião, qual é a melhor forma de lidar com as revoltas que tomam de assalto o mundo árabe? (E, por "lidar", me refiro também ao papel dos EUA e do mundo nessa história.)
A melhor forma é retirar-se progressivamente do mundo árabe. Um passo importante foi dado no Iraque. No entanto, catástrofes humanitárias, como aquela que ocorre na Síria, criam novas situações que exigem um ativismo norte-americano, seja para garantir a estabilidade regional, seja para evitar a violação continuada dos direitos humanos. Trata-se de uma situação particularmente complicada para os Estados Unidos, que colocam em teste a liderança do presidente Obama, que agora deve decidir se aumentará a presença de seu país no mundo árabe em função das ondas de instabilidade que assolam a região desde a Primavera Árabe ou se, ao contrário, ficará mais distante da região, justamente para amenizar o descontentamento generalizado com os EUA e sua presença regional.
Não podemos negar o papel das eleições neste quadro. Sua proximidade muda o "timing" das decisões políticas, e exigem respostas mais rápidas, mas que nem sempre são as mais adequadas. Talvez o presidente Obama, temendo a exploração eleitoral de sua fraqueza ao lidar com a morte dos diplomatas e com a onda de antiamericanismo, resolva intensificar, nos próximos meses, a presença dos EUA no mundo árabe. Isso cria dois problemas imediatos: em primeiro lugar, frustra uma estratégia de política externa de envolvimento com as questões asiáticas (China e Japão, sobretudo), cada vez mais delicadas e centrais na dinâmica da política global. Em segundo lugar, contradiz um dos objetivos fundamentais da política exterior de Obama, justamente o de reconstruir as relações com os mundos árabe e islâmico, e que agora colhe os frutos de seu fracasso.