O Ocidente está subitamente mergulhado em dúvidas a seu próprio respeito.
Séculos de superioridade e influência global pareciam ter chegado a um novo auge com o colapso da União Soviética, e os países, os valores e a civilização do Ocidente julgavam ter vencido a sombria e árdua batalha contra o comunismo.
Essa vitória pareceu especialmente doce depois da guinada da China na direção do capitalismo, que muitos viram como um presságio de uma lenta evolução das demandas da classe média —como direitos individuais e transparência judicial— rumo a uma forma de democracia.
Mas será que a adoção dos valores ocidentais é mesmo inevitável? Será que os valores ocidentais, basicamente judaico-cristãos, são de fato universais?
A ascensão do capitalismo autoritário foi um duro golpe para a premissa, popularizadas por Francis Fukuyama, de que a democracia liberal havia provado ser o sistema político mais confiável e duradouro.
Com o desmoronamento do comunismo, “o que podemos estar testemunhando”, escreveu Fukuyama, esperançoso, em 1989, “é o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como forma máxima de governo humano”.
Mas, levando-se em conta a intensificação do autoritarismo chinês, os rumos revanchistas e ditatoriais tomados pela Rússia e a ascensão do islamismo radical, a vitória do liberalismo ocidental pode parecer inútil, já que seus valores estão sob ameaça até mesmo em suas próprias sociedades.
Os refugiados sírios e outros migrantes que chegaram em grande número à Europa nas últimas semanas estão sendo bem acolhidos em grande parte do continente, especialmente na Alemanha e na Áustria. No entanto, esse movimento também motivou novas preocupações a respeito da crescente influência do islamismo —e dos radicais islâmicos— na Europa.
Muitas potências emergentes da globalização, como o Brasil, estão interessadas em democracia e Estado de direito, mas não na pregação do Ocidente, que consideram hipócrita.
Mesmo a Rússia argumenta ter um caráter excepcional (“a terceira Roma”) e oferecer uma representação mais perfeita da civilização ocidental, alegando que o Ocidente age de forma interesseira, decante e hipócrita ao defender valores universais, mas ignorando-os quando lhe convém.
A disputa acerca de valores não se limita à democracia. Ao rejeitar os valores liberais ocidentais de opção e igualdade sexual, a conservadora Rússia encontra uma causa comum com muitas sociedades da África e com os ensinamentos religiosos do islamismo, do Vaticano, dos protestantes fundamentalistas e dos judeus ortodoxos.
Interpretações extremistas da religião podem ser uma resposta reconfortante e inspiradora para as confusões da vida moderna, mas em breve elas poderão virar também um inimigo da liberdade religiosa e da tolerância, observa Robert Cooper, diplomata britânico que ajudou a construir uma política externa europeia em Bruxelas e definiu o problema dos Estados falidos e pós-modernos em seu livro “The Breaking of Nations” [O rompimento das nações].
Um rápido exame da antropologia nos mostra que “o que nós consideramos valores universais não são tão universais”, segundo ele.
Tendemos, por exemplo, a “falar em democracia como um valor universal”, disse Cooper, “mas quando foi exatamente que as mulheres na Itália obtiveram o direito ao voto? E os negros no sul dos Estados Unidos? Portanto, temos padrões muito rasos para isso”.
Na Itália, as mulheres votam desde 1965, e é possível argumentar que o voto só se tornou universal nos EUA em 1965.
Tendo a possibilidade de escolher, “quase todas as pessoas do mundo gostariam de viver nas nossas sociedades, porque se pode viver melhor e não é preciso mentir o tempo todo”, disse ele. “Então talvez seja errado falar de valores universais. Mas a sociedade que [esses valores] propiciam é universalmente atraente.”
A China é frequentemente citada como um contraexemplo do caráter universal da democracia e dos direitos humanos. No entanto, o que distingue a China é o seu desinteresse em difundir o seu modelo para o resto do mundo.
O universalismo ocidental era real, ainda que excludente. A União Soviética tentou espalhar a revolução e o comunismo, a França teve a sua “Declaração dos Direitos do Homem”, e os Estados Unidos se valeram da sua autoimagem de “cidade edificada sobre um monte”. Já a China se envolve com o mundo guiada apenas por seus próprios interesses, desligados de objetivos morais.
A visão chinesa não é universalista, e sim mercantilista, e os líderes de Pequim estão menos interessados em refazer o mundo do que em se proteger das vulnerabilidades da globalização. A China reage às aspirações ocidentais e aos esforços de remodelar o mundo à sua imagem.
William Burns, diretor do Fundo Carnegie e ex-subsecretário de Estado dos EUA, diz que “nossa tendência à pregação e ao sermão às vezes atrapalha, mas os sistemas democráticos mais abertos têm um núcleo que exerce uma atração duradoura”. Esse núcleo, segundo ele, é “a noção ampla de direitos humanos, de que as pessoas têm o direito de participarem das decisões políticas e econômicas que lhes interessem, e o Estado de Direito para institucionalizar tais direitos”.
“O respeito pela lei e o pluralismo cria sociedades mais flexíveis, porque, do contrário, é difícil manter coesas sociedades multiétnicas e multirreligiosas”, afirmou Burns.
É isso que o mundo árabe enfrentará durante muito tempo, à medida que Estados ligados aos velhos sistemas sucumbirem, acrescentou.
As democracias, sob qualquer forma, parecem mais capazes de lidar com pressões variadas do que governos autoritários. A história não se move lateralmente, e sim em muitas direções diferentes ao mesmo tempo, segundo Burns. “A estabilidade não é um fenômeno estático.”
Deixe sua opinião