Sahira Habo, de 27 anos, não previa o próprio destino nas mãos de combatentes do Estado Islâmico quando ouviu os primeiros tiros ecoarem pelas vielas de Til Qasap, vilarejo pobre nas montanhas de Sinjar, no Norte do Iraque, onde vivia com o marido e três filhos. Minutos depois, a família estava sob custódia dos combatentes — o marido foi executado e Sahira sequestrada, entregue como escrava sexual a um combatente líbio e obrigada a viver sob o estado de terror durante dez meses até escapar, na semana passada, pelas mãos de uma das mulheres do grupo que conheceu em cativeiro na Síria e decidiu ajudá-la, após Sahira ver a filha caçula ser espancada até a morte pelo malfeitor líbio.
— Somos um povo pacífico, não temos envolvimento na guerra, então pensei que nos deixariam em paz — diz.
Histórias como esta se repetem em número alarmante nas tendas do campo de refugiados de Kabar, em Duhok, onde vivem 14 mil pessoas da etnia yazidi — minoria politeísta que vivia reclusa nas montanhas e representa menos de 1,5% da população do Iraque, estimada em 34 milhões. Eles deixaram suas casas após ataque surpresa do Estado Islâmico no Monte Sinjar, em agosto do ano passado, quando os combatentes capturaram milhares de mulheres e crianças. Os motivos do sequestro em massa e o destino das cativas não eram conhecidos até recentemente, quando algumas delas conseguiram escapar pelas mãos de uma nova rede de traficantes que está se especializando em localizar e resgatar estas mulheres das barbas dos jihadistas.
Distribuídas como prêmio
Segundo seus relatos, as yazidis foram capturadas para servir aos combatentes como escravas sexuais e para cuidar do trabalho doméstico — cozinhar, lavar, passar, costurar para os homens em combate. Sahira conta que foi colocada em uma casa com outras sequestradas em seu vilarejo. Pais, maridos e irmãos capturados com elas foram alinhados um ao lado do outro, do lado de fora, e executados com um tiro na cabeça.
Eles, então, separaram as mulheres mais jovens e as enviaram em um ônibus para o vilarejo de Tal Afar, distante cinco horas e controlado pelo EI. Elas desembarcaram em um prédio, onde foram distribuídas como prêmio a combatentes pelo “sucesso na libertação de Sinjar” — Sahira foi dada a um combatente líbio.
Na casa dos 30 anos, ele permitiu que ela ficasse com filhos em uma casa vigiada 24 horas. Mas seu calvário começou logo na primeira noite, quando ele a amarrou com as mãos para trás, amordaçou-a com um pano, e a estuprou. Assustados com seus gritos, os filhos começaram a chorar e foram espancados até que parassem. “Kafir! Kafir!”, ele gritava. A palavra quer dizer infiel.
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— Ele me disse que por não sermos muçulmanos, nós merecíamos tudo aquilo — lembra.
Sahira conta que o combatente passava dias no front e voltava “fora de si”, descontando toda a fúria nela e nas crianças. Um dia ele decidiu que Sahira iria com ele. Como a caçula não parava de chorar, ele a colocou dentro de um armário e trancou a porta. Voltaram apenas três dias depois.
— Ela só mexia os lábios. Minha filha, minha filhinha... — conta, sem conter as lágrimas. — Ele me disse que a levaria para o médico, saiu e me trancou em casa. Pela janela eu vi quando ele a colocou no chão e começou a dar-lhe golpes. Eu não consegui chorar, não pude chorar. No fundo, eu agradecia por ela estar morta, porque afinal estava livre dos espancamentos. Eu me entreguei porque ele ameaçava fazer o mesmo com os outros filhos e eu estava tentando desesperadamente salvar a vida deles.
Sahira mudou-se com o combatente para Tabqa, nos arredores de Raqqa, a capital do EI, e em seguida para a Síria. Lá, ela conheceu a mulher de um combatente local que decidiu ajudá-la. Permitiu que Sahira telefonasse do seu celular para o cunhado, único sobrevivente, entre os quatro irmãos, do massacre em Sinjar — ele estava fora do vilarejo quando houve a invasão do EI — e deu-lhe o contato de um homem na Turquia.
O cunhado então viajou à Turquia para se encontrar com o homem, que pediu-lhe US$ 10 mil para libertar Sahira e os filhos do Estado Islâmico. Sahira fugiu durante a noite até o ponto marcado, onde um homem foi buscá-la em um táxi. Eles atravessaram a fronteira para a Turquia e ela e os filhos foram entregues a uma milícia curda, que a devolveu à família.
— Cada um que escapava piorava as coisas para quem ficava — diz Alia Abas, de 21 anos.
No dia que o EI atacou seu vilarejo, em Tal Azer, a família de Alia decidiu se separar. O pai tem paralisia e não podia caminhar — ele, a mãe e a irmã mais velha ficaram para trás, para tentar arranjar um carro que as tirasse dali, enquanto as filhas mais jovens correram para o alto da montanha, onde acreditavam que estariam seguras. Eram 6 horas da manhã e elas caminharam por duas horas. Pouco depois de chegarem ao topo, combatentes do EI as encontraram. Alia e quatro irmãs foram sequestradas — as demais conseguiram fugir. A mãe de Alia ainda conseguiu telefonar para ela. Queria avisar que os pais estavam em segurança, quando ouviu da filha, antes que um combatente lhes tirasse o telefone:
— Nós não tivemos a mesma sorte, mãe. Eles nos pegaram.
Alia foi separada das irmãs mais novas — enviadas com outras crianças e adolescentes para escolas corânicas, onde foram obrigadas a estudar o Corão e se converter. De acordo com um relatório da ONU, pessoas de minorias não muçulmanas sequestradas pelo grupo, “majoritariamente árabes cristãos e yazidis”, são obrigadas a se converter ao Islã — as que se recusaram foram executadas.
Alia foi levada para uma casa que servia para o descanso de combatentes em Deir ez-Zor, na Síria.
— Só quando chegamos na Síria eu entendi que seríamos feitas de escravas.
O vigilante da casa avisou por rádio que “um novo carregamento” de mulheres havia chegado. Elas eram cerca de vinte. Os combatentes começaram a chegar. Alia entrou em desespero. Gritava e chorava. Nos meses seguintes, as mulheres foram mantidas na casa, enquanto os combatentes iam e vinham.
— Eles iam lutar e voltavam. Eram muitos homens. Eu os amaldiçoava o tempo todo e nos primeiros dois meses apanhei sistematicamente.
Carta de alforria e nova prisão
Alia também era obrigada a estudar o Corão e decorar hadiths na casa onde vivia com outras mulheres escravas, “apanhando, servindo seus desejos e fazendo o trabalho de casa”. Ela servia exclusivamente a um combatente líbio. Quando se recusava a fazer o que ele queria, ele a estuprava. Em seguida, ajoelhava-se para rezar.
— Depois de um tempo, eu parei de resistir. Eu me entreguei — diz.
Alia fingiu ter se convertido ao Islã e, com o tempo, como não oferecia mais resistência, ganhou a confiança do algoz. Um dia, ele se despediu dela, dizendo que havia completado seu treinamento como homem-bomba e seguiria em missão suicida, e entregou-lhe uma carta de alforria. Ela mostra o documento, escrito em árabe, e autenticado por uma corte islâmica de Mossul.
A carta, porém, não lhe dava o direito de deixar o EI, significava apenas que não seria mais escrava. Viúva, ela deveria se casar novamente, dessa vez com um iraquiano. No dia seguinte, o homem a deixou sozinha por alguns minutos para ir ao mercado comprar um carneiro para a festa de casamento.
— Foi quando eu escapei. Eu sabia que se ficasse, não sairia dali viva. Estava chovendo e escuro. Eu pulei a janela a comecei a andar na direção do Monte Sinjar.
Perto de um vilarejo, Alia pediu ajuda. Mas a família a entregou de volta para o EI. Alia ficou 15 dias em uma prisão. Quando levada à corte islâmica em Mossul, tentou o suicídio pulando da janela. Ela foi entregue a um combatente egípcio mais velho, já casado e com filhas. Um dia, escondeu um dos aparelhos celular da casa e, quando conseguiu ficar sozinha, telefonou à família. A mãe pagou U$ 10 mil a um traficante para ter a filha de volta. Ela conseguiu escapar com uma das irmãos. Mas duas continuam sequestradas — o traficante agora pede US$ 25 mil para libertá-las, dinheiro que a família não tem.
Matthew Barber, um estudioso da história Yazidi na Universidade de Chicago, compilou uma lista de 4.800 mulheres e crianças yazidis sequestradas pelo EI e estima que o número total poderia ser até 7 mil.