Lá estava ele, subindo as escadas do escritório da secretaria de Estado de New Hampshire cercado por simpatizantes. Bernie Sanders, mais conhecido como o socialista sem remorso da América, estava prestes a se registar como um candidato presidencial no estado que realiza as primeiras primárias no país.
Ao longo de sua carreira política de 35 anos, tudo em Sanders transmitia a persona do rebelde com uma causa - no caso, uma cruzada de décadas contra a desigualdade de renda.
Ele foi o prefeito e congressista que havia permanecido orgulhosamente independente, chamando com sarcasmo os partidos Democrata e Republicano de “Tweedledee e Tweedledum” [personagens fictícios de Lewis Carroll] pelo que considerava se vender à “classe bilionária.” Ele foi o estranho exaltado que pregou uma placa em homenagem ao ícone socialista Eugene V. Debs na parede de seu gabinete no Senado. Até o seu cabelo era independente - uma massa branca indisciplinada que evocava um homem tão consumido pela revolução política que não tinha tempo para se preocupar com um pente.
“Este país precisa de uma revolução política!”, disse o senador de Vermont para uma multidão que reuniu em novembro. “O governo pertence a todos nós, e não apenas para 1%!”
Mas agora que havia chegado o momento de colocar seu nome nas cédulas presidenciais, Sanders havia tomado uma decisão que revelava uma dimensão menos célebre de sua identidade política: ele também é um homem pragmático que gosta de ganhar. E, assim, o primeiro passo na revolução de Sanders foi convencional. O exaltado político solitário virou um democrata.
“Foi uma decisão difícil, porque ele se orgulhava da independência”, disse seu amigo de longa data Huck Gutman, um professor de Inglês na Universidade de Vermont. “Ele lutou com o fato de que por ser alguém que criticava o Partido Democrata por falta de visão de futuro e de coragem, poderia ser um golpe nas primárias democratas.”
A sabedoria da escolha deu seus primeiros frutos nas prévias de Iowa, onde Sanders, 74, ficou a menos de meio ponto percentual de Hillary Clinton, a candidata do “establishment” à indicação democrata. Nesta terça, em New Hampshire, ele bateu a adversária.
As razões parecem óbvias para a decisão de Sanders. Campanhas independentes para presidente nunca venceram. E Sanders, que não quis ser entrevistado para este artigo, disse várias vezes que nunca seria um “spoiler”, um rótulo aplicado ao candidato presidencial da terceira via Ralph Nader, que foi lançado no esquecimento político após ser responsabilizado pela derrota do democrata Al Gore na eleição de 2000.
“Eu não gosto de campanhas simbólicas”, escreveu Sanders em sua autobiografia política de 1997, “Outsider in The House.”
Mas as razões são mais profundas.
Ao longo de sua carreira política, Sanders avançou cada vez em direção ao Partido Democrata, com um histórico de votação no Congresso mais democrata do que o da maioria dos democratas. Neste ponto, ele explica seu ponto de vista social-democrata referindo-se não ao seu antigo herói Debs, mas a um dos democratas mais amados, Franklin Delano Roosevelt.
“Eis os fatos”, disse Garrison Nelson, um cientista político da Universidade de Vermont, que tem monitorado Sanders durante anos. “Bernie é o único candidato socialista que conheço que quer ganhar. Esse é o objetivo de Bernie. Ele é uma das pessoas mais competitivas que já conheci -muito competitivo e muito inteligente. Por as pessoas pensarem que ele é um louco descabelado, eles não entendem o quão inteligente ele é.”
Primeiros passos
Foi por volta de 1976 que Bernie Sanders cansou de perder.
Criado em uma família da classe operária no Brooklyn, Sanders sempre teve uma veia competitiva, como lembrou recentemente em um encontro promovido pela CNN, quando ele falou sobre seu time de basquete na escola primária e de seu sucesso como um maratonista no ensino médio.
Sua formação política começou quando seu irmão mais velho, Larry, o arrastou às reuniões dos Jovens Democratas no Brooklyn College. Logo, ele circulava pelos movimentos de mudança social que varriam o país na década de 1960.
Na Universidade de Chicago, Sanders se envolveu com a política estudantil radical. Ele se juntou à Liga dos Jovens Socialistas. Tornou-se um líder durante um capítulo estudantil do Congresso de Igualdade Racial, que encenou medidas para dessegregar o alojamento universitário. Ele trabalhou na campanha de reeleição de Leon Despres, um vereador de Chicago famoso por desafiar a máquina democrática famosa do prefeito Richard J. Daley, aprendendo o beabá da política de base.
Ele lia e lia, mergulhando em Thomas Jefferson, Abraham Lincoln e escritores do cânon socialista, como Karl Marx, Erich Fromm e John Dewey.
Depois de se formar, Sanders voltou a Vermont cheio de ideias vagas sobre mudar o mundo à maneira que os anos 60 lhe havia ensinado - do lado de fora.
A vida de “outsider” era bastante sem rumo. Sanders tentou trabalhar como carpinteiro, escreveu artigos políticos desmedidos para jornais obscuros, teve um filho, se divorciou e se viu desempregado. Em seguida, em 1971, ele foi convidado para uma reunião do incipiente Partido da União pela Liberdade, um grupo desconexo de esquerdistas antiguerra com esperança de sacudir a política do estado.
O partido procurava um voluntário para encarar uma campanha simbólica para o Senado dos EUA naquele ano. Sanders foi selecionado para ser o símbolo. Logo, ele estava em campanha em todo o estado, e a raiz de seu discurso nasceu.
Ele explica a origem do discurso em sua autobiografia. O House Banking Comitee havia acabado de emitir um relatório que descrevia “o grau em que os grandes bancos da América controlavam muitas das grandes corporações, exercendo enorme influência econômica sobre a sociedade.” Sanders achou de cair o queixo. Ele começou a escrutinar o relatório, avaliando cada detalhe de Vermont e baseando nisso seus discursos, que soam muito semelhantes aos de sua campanha atual.
“Toda vez eu salientava que tal disparidade na distribuição da riqueza e da tomada de decisão não era apenas injustiça econômica e que, sem democracia econômica, era impossível alcançar uma verdadeira democracia política”, escreveu Sanders. “Como poderíamos mudar isso?”
Aparentemente, não era usando o passe da União pela Liberdade.
Na eleição para o Senado de 1972, Sanders teve 2% dos votos. Quando ele concorreu novamente, em 1974, ele ficou com 4%. Quando ele correu para governador em 1976, ele recebeu 6%. Foi nesse ano que Sanders cansou de perder. Ele deixou o partido.
Ele disse aos repórteres que o Partido da União pela Liberdade tinha falhado “tragicamente” na tentativa de “fazer as pessoas trabalharem em conjunto para lutar por suas vidas e sua dignidade”.
Embora suas ideias básicas tenham permanecido inalteradas, Sanders começou a repensar os meios para implementá-las. Sua próxima tentativa foi, com muito esforço, gravar filmes de baixo orçamento sobre radicais pouco conhecidos dos americanos, incluindo um vídeo sobre Debs, que concorreu à presidência cinco vezes, em uma delas estava na prisão, e ajudou a fundar o Partido Socialista da América.
Ele estava planejando outros filmes, sobre Mary Harris “Mother” Jones, Emma Goldman e Paul Robeson, quando seu amigo próximo Richard Sugarman sugeriu que ele concorresse à prefeito de Burlington como candidato independente.
A ideia desta vez era realmente ganhar.
Em sua campanha, Sanders começou a traduzir sua filosofia política em metas locais. Ele prometeu consertar uma via subterrânea que estava abandonada e com isso deixava um bairro pobre isolado quando chovia. Ele disse que iria barrar obras na beira-mar e se opôs a um aumento de impostos. Venceu por 10 votos.
Manchetes globais ressaltaram a eleição do primeiro prefeito socialista da América na “República Popular de Burlington”. Sanders não fugiu do rótulo, dizendo a repórteres que ele iria governar com um comitê de formado por pobres, sindicatos e “marginalizados”.
“Estamos entrando com uma análise definitiva de classes”, disse na época, “ e uma crença de que a teoria trickle-down do crescimento econômico, a ‘teoria de o que é bom para a General Motors é bom para a América’, não funciona.”
Na realidade, seus três mandatos como prefeito foram marcados mais pela prática do que pela ideologia. Ele fechou compromissos com construtores para expandir a habitação a preços acessíveis. Ele tentou reduzir os preços da televisão a cabo. Sanders ainda teve alguns de seus velhos aliados de esquerda presos quando tentaram bloquear uma fábrica da General Electric que fazia armas militares, decidindo que os empregos eram mais importantes do que a abstração da paz mundial.
Como sua projeção nacional crescendo, Sanders começou a se aproximar do Partido Democrata.
Em 1984, ele apoiou o democrata Walter Mondale para presidente, contrariando alguns dos seus antigos aliados de União pela Liberdade. Em 1988, ele apoiou com entusiasmo o democrata Jesse Jackson, embora tenha acrescentado que desejava que Jackson estivesse concorrendo “como independente - fora do Partido Democrata”.
‘Rebeldes’ Trump e Sanders vencem as primárias em New Hampshire
Leia a matéria completaMas um padrão estava tomando forma para levar Sanders a Washington. Ele continuaria a ser o independente que os moradores de Vermont conheciam e aparentemente amavam, mas estava fazendo amizade com os democratas.
“Ele é idealista e pragmático”, disse seu amigo Jim Rader, que levou Sanders à reunião fatídica da União pela Liberdade em 1971. “Eu não acho que ele veja qualquer conflito nesses seus dois lados.”
Atuação pró-democratas
Foi o pragmático que concorreu a um assento na Câmara dos EUA em 1990. Sanders fez campanha e ganhou como independente, mas com o apoio tácito dos democratas de Vermont.
Perguntado na época como ele iria trabalhar com um partido que ele tanto havia criticado, Sanders disse a um repórter, “Eu avisei as pessoas do meu estado que há 20 anos sou um independente e eu não quero vir aqui e de repente virar democrata. “
Mas desde o início, Sanders deixou claro que ele queria diálogo com os democratas, mesmo que não se tornasse um deles. Ele tinha pouca escolha, pois essa seria a única maneira de obter as aprovações nas comissões. A proposta foi inicialmente rejeitada pelos democratas conservadores com medo de serem acusados, em ano eleitoral, de se unir a um socialista. Mas o acordo foi firmado, e logo o medo de que Sanders se tornasse uma dor de cabeça socialista desapareceu.
Ele entrou no santuário do partido, onde ele permaneceu como um parlamentar relativamente pouco problemático.
“Ele era muito mais um estudante sério do Congresso”, disse um democrata sênior, que falou sob a condição de anonimato. “Ele não era um rebelde. Estava realmente tentando fazer as coisas funcionarem. Nunca ouvi quaisquer queixas -.ninguém nunca disse ‘estamos tendo problemas com Bernie’”.
Em sua carreira de 25 anos na Câmara e depois no Senado, Sanders votou com os democratas mais de 90% das vezes, ocasionalmente divergindo na questão do controle de armas, na qual ele disse que seus votos foram influenciados pelas preocupações de seu estado rural.
A maioria das vitórias Sanders foram modestas, do tipo entrincheiradas - aprovar uma emenda para um extra de US$ 10 milhões para programas de nutrição de idosos, por exemplo, ou US$ 15 milhões para ajudar as pessoas a climatizar suas casas.
A forma como Sanders operava diz mais. Embora ele pudesse fazer um discurso “batendo o punho”, ele geralmente evitava o tipo de movimento rebelde que irritava os líderes democratas, como o bloquear votações ou impedir o progresso de medidas que ele sabia que iriam ser aprovadas de qualquer maneira.
Quando Sanders e seus aliados perderam apoio por um sistema de pagamento único durante o debate sobre o sistema de saúde, por exemplo, ele cedeu e votou pelo Affordable Care Act do presidente Obama, negociando US$ 11 bilhões para os centros de saúde de algumas comunidades.
Quando resolveu fazer um discurso explosivo de oito horas e 37 minutos detonando um acordo firmado para estender cortes de impostos para ricos implementados na era George W. Bush, Sanders teve o cuidado de não punir seus colegas.
“O Discurso”, como ficou conhecido, transformou Sanders em herói para muitos progressistas, mas lhe custou um pouco da boa vontade de seus colegas.
‘Nosso recado vai ecoar de Wall Street a Washington’, diz Sanders
Leia a matéria completaSua aliança com os democratas foi paga ao ser ajudado a afastar os adversários. Sanders foi apoiado por Bill Clinton e mais tarde Al Gore contra Nader, do Partido Verde, apesar de exaltá-lo como “uma progressiva exemplar.”
Tudo isso levou ao ponto em que, quando o senador independente de Vermont, Jim Jeffords, decidiu se aposentar, em 2005, não havia dúvida de quem o partido iria recrutar para manter o assento. Eles se voltaram a outro independente, mas que agora eles viam como um democrata de fato - Sanders.
“Ele tinha um histórico de votação bastante consistente na Câmara, que o definia como mais democrata do que qualquer outra coisa”, disse um ex-oficial do Comitê da Campanha Democrata para o Senado, que falou sob a condição de anonimato. “Houve um nível de conforto de que ele era um democrata.”
De sua parte, Sanders apoiou um candidato democrata para sua cadeira na Câmara. Ele também havia conversado com um jovem progressista que estava pensando, como Sanders tinha feito décadas antes, em concorrer de forma independente.
“Pelos conselhos de Sanders e de outros políticos, parecia que eu ainda não tinha apoio suficiente para concorrer”, disse David Zuckerman, agora um senador de Vermont que faz campanha para Sanders no estado. Ele descreve o pré-candidato como um mentor político para uma trilha de sucesso. “Sem dúvida, se eu tivesse recebido seu apoio, era mais provável que tivesse concorrido.”
Dura decisão
Quando Sanders começou a pensar na corrida presidencial, a pergunta inevitável era se ele iria concorrer de forma independente.
Não está claro quão sério ele cogitou essa a ideia, mas Sanders passou a se reunir líderes progressistas, quase todos ainda assombrados pela experiência com Nader em 2000, o que exortou Sanders a concorrer como um democrata.
Um deles foi Steve Cobble, diretor político dos Democratas Progressistas da America, que tinham organizado uma petição para pressionar Sanders a concorrer. Cobble disse que a conversa girava em torno da campanha de Jesse Jackson de 1988.
Sanders teve reuniões com ex-colegas da Casa e políticos que não queriam ver Hillary Clinton coroada como candidata democrata. Eles deixaram claro que queriam Sanders concorrendo, mas somente como democrata. Isso traria ainda a vantagem óbvia de ajudá-lo a levantar os US $ 40 milhões de que precisaria para organizar sua campanha antes das primárias de Iowa. Uma quantia difícil, se não impossível, de se levantar como candidato independente.
Como Sanders lembrou, ele precisou de longas caminhadas em Burlington com seu velho amigo Gutman, falando sobre as opções. “Concorrer como independente poderia garantir a vitória de um presidente republicano”, disse Gutman, lembrando as conversas. Por outro lado, tornar-se um democrata significava “se afastar de algo do qual ele tinha muito orgulhoso.”
“Ele sentiu cada vez mais, ao longo dos anos em Washington, que a agenda que estava perseguindo como um progressista independente não estava relacionada com Franklin Roosevelt”, disse Gutman.
Era isso.
Ele seria “um democrata que se esforça para recuperar o coração e o centro do Partido Democrata. Lembra-se quando Franklin Roosevelt disse: “bancos me odeiam. Eu agradeço seu ódio’” Gutman disse, parafraseando o discurso 1936 da campanha de Roosevelt, na qual ele protestou contra o sistema bancário imprudente e os monopólios financeiros.
Era o tipo de coisa que Sanders vinha sido dizendo desde que transitava em torno do relatório bancário em seus dias de União pela Liberdade.
Na secretaria de estado de New Hampshire, Sanders tornou sua decisão oficial. Seguindo a tradição, ele deixou uma nota apresentando sua candidatura, escrevendo que era hora de uma “revolução política”. Em seguida, o socialista democrata de Vermont tomou o próximo passo lógico. “Eu sou um democrata”, disse à multidão de repórteres esperando do lado de fora.
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