Depois de oito anos se sentindo “excluído” como cristão, David Cox anda bem mais leve ao longo das últimas semanas. Após uma eleição na qual Donald Trump, o empresário que já passou por três divórcios, foi mais votado pelos evangélicos dos EUA do que o beato George W. Bush anos atrás, Cox testemunhou uma mudança imensa na mentalidade dos seus colegas evangélicos – saindo da trepidação e até mesmo medo, para a esperança. É um sentimento, diz ele, de “ser aceito outra vez”.
De um lado, Trump é uma bela de uma colherada de óleo de rícino, difícil de engolir, diz ele. Mas a careta, para Cox, vale a pena, porque ele acredita que um governo Trump ajudaria a religar o país com seus valores judaico-cristãos, assim como a sua própria igreja metodista de 187 anos, que utilizou suas vigas de madeira originais, da época anterior à Guerra Civil dos EUA, na base da construção de um novo santuário em Henry County, no estado da Geórgia.
“Os cristãos tiveram uma chance de verdade de ver o que aconteceria com o país sob Obama, e sabíamos que precisávamos de uma mudança”, diz Cox, que é aposentado e dono de um pequeno negócio, um dos 81% dos evangélicos que votaram em Trump. “Agora são os liberais que vão ver que, se você tentar ir longe demais, as coisas podem se voltar contra você – e com tudo”.
De muitas maneiras, essa é a questão que está agora diante de evangélicos como Cox: o quanto voltar. Será que eles deveriam tentar anular leis que acreditam serem opostas aos valores cristãos – dos direitos LGBT até o aborto – ou devem se concentrar em defender seu direito constitucional de liberdade religiosa, que sentem que estão sendo violados? São poderosas as forças capazes de virar o jogo contra aqueles que, como acreditam muitos evangélicos, visaram destruir um estilo de vida essencialmente cristão. Mas há evidências também de que alguns desejam utilizar esse momento para alterar o diálogo e garantir que as preocupações cristãs sejam ouvidas e respeitadas.
“Sim, há uma sensação de alívio [entre evangélicos]”, diz Michael Griffin, pastor veterano da Liberty Baptist Church, em Hartwell, na Geórgia. “A percepção do governo Obama permitiu que o ativismo LGBT fosse longe demais, e esse ímpeto não está mais lá. Mas eu acredito, apesar outros evangélicos discordarem, que hoje já temos o casamento do mesmo sexo – isso, da parte deles, eles conseguiram. Mas parece que os liberais estão tentando partir da acomodação para a aprovação, e eu acho que na América você tem o direito de discordar”.
Perseguição de Obama
Para muitos evangélicos, houve uma sensação de perseguição no fato de a administração Obama ter promovido os direitos dos transgêneros na questão do uso de banheiros, bem como no número crescente de processos contra donos religiosos de empresas.
Cerca de 32% dos líderes evangélicos dos EUA afirmam que, no momento, sentem sofrer perseguição religiosa, enquanto 76% acreditam que sofrerão perseguição no futuro, na forma de pressão social, financeira e política, segundo uma pesquisa de outubro feita pela National Association of Evangelicals.
Esse sentimento pesou forte para a vitória de Trump: 26% do eleitorado, no mês passado, era composto de evangélicos brancos – um recorde, segundo as pesquisas de boca de urna. Desse grupo de eleitores, Clinton recebeu apenas 16% dos votos.
Agora os republicanos estão reunindo forças para expandir a capacidade de invocar valores religiosos em público. Líderes congressionais, incluindo os senadores republicanos Ted Cruz, do Texas, e Mike Lee, de Utah, afirmaram esta semana que irão reintroduzir o Ato de Defesa da Primeira Emenda (FADA, na sigla em inglês).
Esse projeto de lei proibiria o governo federal de punir por atitudes discriminatórias as pessoas que agirem de acordo com alguma crença religiosa ou convicção moral de que o casamento deva ser reconhecido como a união entre um homem e uma mulher, ou de que as relações sexuais devam ser reservadas adequadamente apenas para uma tal relação.
Legisladores encorajados
De forma semelhante, legisladores estaduais se sentiram encorajados pela vitória de Trump.
Logo após a eleição, os legisladores de Ohio foram rápidos em aprovar uma lei que proibia o aborto após ser detectado batimento cardíaco – um padrão que, com efeito, torna ilegal o aborto após seis semanas. Uma legisladora considerou esse acontecimento uma “vitória”, que não teria sido prevista não fosse pela eleição de Trump.
A essa altura ainda, tais manobras têm desafios significativos diante de si. Muitos republicanos pró-empresariado veem com desconfiança leis que atacam abertamente a comunidade LGBT, dados os boicotes que já resultaram disso. E tais leis também são vistas como tendo pouca base jurídica na qual se sustentarem. O republicano John Kasich, governador de Ohio, vetou a lei do batimento cardíaco, sugerindo que ela deveria ser considerada inconstitucional.
Mas as promessas de Trump de instalar juízes conservadores na Suprema Corte podem aumentar ainda mais a autoconfiança desses políticos. É certo que alguns principais grupos conservadores se sentem fortalecidos.
Tony Perkins, presidente do Family Research Council, disse no mês passado que os EUA estão agora “à beira de uma geração conservadora”.
Conservadores religiosos X comunidade LGBT
O sentimento de alívio de “perseguição” de um lado, porém, arrisca passá-la de volta para o outro, conforme aponta a comunidade LGBT, em particular, que há séculos se sente perseguida. Esse embate dificulta muito para se encontrar uma base em comum para legislar, segundo especialistas em direito constitucional.
“O debate está [agora] sob controle de extremistas dos dois lados: o FADA vai muito, muito além de pequenos negócios e da indústria dos casamentos, e os movimentos dos direitos gays cada vez mais querem o fim de isenções religiosas de todos os tipos – até mesmo para organizações religiosas com fins não lucrativos”, diz Douglas Laycock, professor de direito da University of Virginia.
A população se divide sobre em que medida a Constituição protege os cristãos e aderentes de outras religiões que se dizem compelidos por suas crenças a fazer alguma forma de pressão política. O Pew Research Center descobriu, no último outono, que 48% da população dos EUA acredita que donos de negócios ligados a casamento deveriam ter poder de recusar seus serviços para casais do mesmo sexo, se tiverem objeções religiosas a isso, enquanto 49% acredita que eles deveriam ser obrigados por lei a servir casais do mesmo sexo.
Mas as batalhas entre os conservadores religiosos e a comunidade LGBT demonstram a velocidade com a qual os termos do embate mudaram. O governador republicano da Carolina do Norte, Pat McCrory, perdeu a reeleição este ano em parte por ter apoiado uma lei que anulava proteções significativas para a comunidade LGBT.
“Dez anos atrás, quem imaginaria que um político teria problemas por assumir essa posição do governador McCrory? E esse é um fato significativo: É uma indicação do quanto a linha de batalha avançou para dentro do território dos conservadores religiosos”, diz o professor de direito Mark Tushnet, da Harvard University, autor do livro “Why the Constitution Matters”.
Suprema Corte no centro do debate
De muitas formas, o modo como essa batalha irá se desdobrar dependerá em grande parte de evangélicos como Cox. De um lado, ele diz que gostaria de ver uma Suprema Corte mais conservadora. Mas, visto que perdoar e enxergar todos os seres humanos como prova da grandiosidade de Deus são alguns dos princípios cristãos mais cruciais, ele pensa no assunto nos termos da aliança com a qual ele entrou, junto com sua esposa, através do casamento: “Eu posso ter razão, mas isso não significa que ela esteja errada”.
Nesse sentido, o grupo evangélico Council for Christian Colleges and Universities (CCCU) está fazendo pressão pela aprovação de uma lei nacional de “Justiça para Todos”, refletindo um compromisso já forjado no estado conservador de Utah, que garantiu direitos LGBT ao mesmo tempo em que acordava isenções sólidas para os religiosos.
“Os direitos não precisam ser sempre assegurados por um grupo às custas de outro”, disse Shapri LoMaglio, vice-presidente de relações externas e governamentais do CCCU, ao Christianity Today.
E há já outros sinais de que um acordo possa vir a ser firmado. Na última quarta-feira, os oficiais de Massachusetts concordaram em revisar a política de identidade de gênero (Gender Identity Guidance) do estado após quatro igrejas entrarem com um processo. Como parte do acordo, o estado admitiu que a Primeira Emenda permite, de fato, a expressão religiosa em atividades como refeições comunitárias.
No fim, Cox argumenta que os norte-americanos, incluindo os conservadores, precisam parar de se ofender tanto com as crenças uns dos outros.
“Não é possível impedir as pessoas de se ofenderem, porque, quando você tira aquilo que é ofensivo para você, esse gesto se torna ofensivo para mim”, diz Cox. “Parece que esquecemos que somos uma cultura mista, na qual precisamos todos aprender a conviver juntos. Tenho esperança de que é possível fazermos melhor e no fim amarmos uns aos outros como criaturas de Deus”.
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