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Opinião

Para renovar o sistema, é preciso redefinir “saúde”

H. Gilbert Welch, professor de Medicina Comunitária e Medicina Familiar da Dartmouth Medical School (EUA), escreve para o New York Times.

Os canadenses não conseguiram descobrir. Nem os japoneses, franceses, ou ingleses. Nenhum sistema de saúde captou, com seriedade, a questão mais fundamental de sua tarefa: o que constitui a saúde? Enquanto os Estados Unidos contemplam uma renovação de seu sistema, talvez devamos abordar o assunto. Durante anos, a pergunta foi empurrada àqueles com um interesse financeiro na resposta – profissionais da saúde ligados a companhias farmacêuticas, firmas de biotecnologia, fabricantes de dispositivos médicos e tecnologias diagnósticas, centros de diagnóstico independentes, centros cirúrgicos, hospitais e centros médicos acadêmicos –, um grupo apropriadamente rotulado pelo editor do The New England Journal of Medicine, trinta anos atrás, como o "complexo médico-industrial".

Essa é uma indústria que aprendeu muito ao longo dos anos. Eu sei, pois fiz parte dela. Cada vez mais, ela se fixou numa resposta muito conveniente: saúde é a ausência de anormalidades. No passado, as pessoas buscavam o sistema de saúde porque estavam doentes. Hoje, é o complexo médico-industrial que busca os pacientes. Ele estimula aqueles com sintomas menores a fazer uma avaliação, e exige que as pessoas que se sentem bem sejam "checadas" – apenas para se certificarem de que não há nada errado. Então, se a saúde é a ausência de anormalidades, a única maneira de saber se você é saudável é se tornando um cliente. Porém pessoas saudáveis não são clientes muito bons; eles são como as pessoas que pagam a fatura total do cartão de crédito todos os meses. O dinheiro está naqueles onde pode ser encontrada uma anormalidade.

O complexo médico-industrial tornou isso algo relativamente fácil de fazer. Ele desenvolve tecnologias diagnósticas capazes de encontrar anormalidades cada vez menores. Assim, mais e mais de nós descobrem ter cartilagem danificada nos joelhos, discos salientes nas costas e veias estreitadas por todo o corpo. Um número ainda maior também descobre ter "manchas" ou "sombras" – quase sempre insignificantes, mas consideradas "preocupantes". Como resultado, mais e mais pessoas realizam cirurgias no joelho, nas costas, angioplastias e um número maior de investigações diagnósticas.

O complexo médico-industrial tem ainda outra forma de encontrar mais anormalidades: ele simplesmente estreita a definição de "normal". Veja a pressão sanguínea, por exemplo. No passado, relativamente poucos indivíduos eram considerados como tendo pressão anormal. Atualmente, uma pressão sanguínea normal deve estar abaixo de 12/8. Isso significa que muito mais da metade da população adulta dos Estados Unidos é anormal. O mesmo acontece com o colesterol. E, mesmo envolvendo uma porção menor da população, definições mais estreitas para "normal" estão expandindo o número de pessoas que sofrem de diabetes e osteoporose. Então, mais e mais de nós são tratados para essas doenças.

Encontrar mais anormalidades tem sido uma grande estratégia para nossa indústria. Todavia, essa prática é um desastre para os custos do sistema de saúde. Alguns acreditam que encontrar mais anormalidades é a estratégia correta para aprimorar a saúde do país, mas o quanto ela reduz as mortes e deficiências é algo a se debater.

As novas anormalidades encontradas não são, no geral, muito graves, e sim leves; não amea­çam vidas, e, em muitos pacientes, nem mesmo produzirão sintomas. Quando o benefício do tratamento é perceptível, ele é muito pequeno – tão pequeno que muitos pacientes, algumas vezes centenas deles, precisam ser tratados para que uma pessoa se beneficie. Porém, mais comum do que incomum, o valor para tratar essas leves anormalidades é simplesmente desconhecido. O que se sabe é que outros são invariavelmente atingidos no processo.

Reconhecidamente, os danos costumam ser leves – tonturas ou falta de ar pelo uso excessivo de remédio para pressão, por exemplo. Ocasionalmente, entretanto, esses danos são mais graves, até mesmo fatais; no ano passado, por exemplo, um grande estudo sobre tratamentos intensivos contra diabetes foi interrompido por ter causado mais mortes. Entretanto, enquanto esses danos são raros, também o são benéficos– se é que eles existem. No entanto, o complexo médico-industrial tem sistematicamente exagerado nos benefícios e minimizado ou ignorado os danos.

A realidade tem mais nuances: o fato de uma estratégia fazer mais bem do que mal é uma definição mais apertada do que se anuncia. Logo há uma questão maior. Como a "ausência de anormalidades" afeta nossa percepção de saúde? Essa ideia é, ao mesmo tempo, limitada e ampla demais. É limitada porque há mais em ser saudável do que lutar para evitar a morte e as doenças. Saúde é mais do que um estado físico de ser; é também um estado mental. Além disso, a saúde é ampla demais porque todos nós trazemos anormalidades. A ideia leva o sistema a procurar coisas que estejam erradas – uma busca que terá sucesso na maioria de nós. Então, nos sentimos mais vulneráveis. Essa vulnerabilidade induzida questiona o próprio senso de bem-estar e flexibilidade que, sob muitos aspectos, define a saúde como tal. Enxergar a saúde como ausência de anormalidade, portanto, combate o desejo por uma sociedade mais saudável.

As bases estratégicas criaram uma série de outros problemas: médicos emboscados pelo número de problemas que seus pacientes supostamente têm (e que muitas vezes se distraem dos mais importantes); médicos em treinamento cada vez mais confusos sobre quem está realmente doente, e quem não está; advogados cada vez mais ocupados com acusações de "insucesso no diagnóstico"; pacientes que recebem tratamento demais, ou perdem o seguro-saúde, por receberem um novo diagnóstico; e um desgastado e amedrontado público, à deriva de uma cultura de doenças.

Ah, eu já mencionei que isso tudo tem sido um desastre para os custos do sistema de saúde? Os milhões de norte-americanos adversamente afetados pelo impiedoso crescimento dos custos de saúde – empregadores que não conseguem pagar os seguros, pacientes que não conseguem comprar os remédios

receitados ou encontrar um seguro e muitos outros –, precisam assumir a responsabilidade por decidir o que a saúde realmente significa, e não entregar essa decisão a "especialistas" com enormes incentivos financeiros.

E mesmo aqueles que não precisam se preocupar com dinheiro, ainda assim precisam assumir essa responsabilidade. A saúde de cada um pode depender disso.

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