Otávio Marques de Azevedo contou a história de um crime em três atos. Cumprindo prisão domiciliar após acordo de delação premiada, o ex-presidente da Andrade Gutierrez expôs, em audiência judicial, na sexta passada, o funcionamento de um esquema de propina ligado às obras da Usina Siderúrgica Nacional da Venezuela. Cada ato tem um protagonista distinto: pela ordem, o então presidente Lula, o glorioso BNDES e João Vaccari Neto, à época tesoureiro do PT. Nos dois atos iniciais, tomados isoladamente, não há crime. Mas a Justiça os investiga à luz do terceiro, que é o grand finale.
O primeiro ato concluiu-se em setembro de 2008, com a assinatura do acordo entre a Andrade Gutierrez e a estatal venezuelana de siderurgia para a construção de um usina no estado de Bolívar, orçada em US$ 1,8 bilhão. Pelo acordo, a obra seria financiada pelo BNDES, bancos privados e o governo da Venezuela. Segundo Marques de Azevedo, o triunfo da empreiteira brasileira, que enfrentava concorrentes italianos, decorreu de um acerto entre presidentes: “A Andrade conversou com o Lula, que pediu diretamente ao Hugo Chávez para que olhasse para o Brasil”.
O segundo ato consumou-se em dezembro de 2010, quando o BNDES liberou o financiamento de US$ 865,4 milhões para a obra. Entre 2009 e 2013, o Tesouro transferiu mais de R$ 300 bilhões ao BNDES, obtidos por emissão de títulos de dívida pública, assegurando os capitais que converteram o banco público no “melhor banco de investimento do mundo”, na frase célebre de Eike Batista. A usina venezuelana era apenas mais uma das inúmeras obras beneficiadas por empréstimos subsidiados na América Latina e na África.
Sob o estandarte neonacionalista do BNDES repousa uma ideologia da corrupção
O grand finale deu-se no início de 2011, por meio de um ajuste entre Vaccari e a Andrade Gutierrez, que se comprometeu a repassar ao PT uma propina equivalente a 1% do valor do financiamento do BNDES — ou seja, US$ 8,654 milhões. A cobrança da propina não constituiu surpresa: Marques de Azevedo fora comunicado em 2008 pelo então presidente do PT, Ricardo Berzoini, de que a “taxa partidária” de 1% tornava-se uma norma em todos os contratos com o governo, e não apenas nos negócios com a Petrobras.
O ato final da operação siderúrgica na Venezuela é um crime óbvio, de responsabilidade direta de Vaccari. Contudo, os dois atos prévios, que o propiciaram, só serão tipificados como crimes se as investigações revelarem seu nexo material com o terceiro. Previsivelmente, Lula e o BNDES alegam que agiram nos limites da lei e de suas atribuições, desconhecendo por completo a destinação final da parte dos recursos públicos desviada para o PT. Qualquer um tem o direito de acreditar nisso, no saci-pererê, na cuca ou na mula sem cabeça.
O acerto de Lula com Chávez inscreve-se na tradição da “diplomacia de negócios” conduzida por chefes de Estado e governo. Nos anos 1960, o presidente Charles de Gaulle qualificou um primeiro-ministro japonês que visitava países estrangeiros com comitivas de empresários como “vendedor de transístores”. De lá para cá, a prática japonesa disseminou-se nas relações internacionais. Ao menos em tese, Lula pode argumentar, como faz, que operou na Venezuela (e em tantos outros países) pelo bem dos “interesses nacionais”, uma expressão aberta às mais diversas traduções.
No episódio venezuelano, o ato mais interessante não é o primeiro nem o terceiro, mas o segundo. Um compromisso genérico de financiamento do BNDES constou do acordo empresarial firmado em 2008, mas a liberação efetiva de recursos demandou mais de dois anos. Nota do banco garante que a operação “obedeceu a todas as etapas usuais” de análise. No âmbito judicial, uma acusação solicitaria a comprovação de que Lula interferiu no processo decisório do BNDES. Contudo, o ato do banco merece exame no domínio da ciência política.
O BNDES apela ritualmente a um discurso de fundo ideológico para justificar seus subsídios a obras de empreiteiras brasileiras no exterior. Basicamente, o banco diz que gera rendas e empregos no Brasil, além de contribuir com a capacitação tecnológica de empresas nacionais. O argumento, reminiscente do “Brasil Potência” de Ernesto Geisel, esquiva-se de confrontar o problema econômico do custo de oportunidade dos financiamentos. A União arca com um valor total de subsídios concedidos pelo BNDES em torno de R$ 184 bilhões. Em 2014, os dispêndios da União com pagamentos desses subsídios atingiram R$ 21,3 bilhões, cerca de um quarto do orçamento federal da educação. Não seria melhor poupar os contribuintes dessa sangria ou, alternativamente, investir esses capitais na tão necessária modernização da infraestrutura brasileira?
Sob o estandarte neonacionalista do BNDES repousa uma ideologia da corrupção. De fato, a lógica proclamada pelo banco dispensa Lula de interferir explicitamente nos mecanismos decisórios do BNDES, pois a aprovação dos projetos de empreiteiras brasileiras no exterior era quase automática, derivando de uma tradução ideológica do “interesse nacional”. Nesse contexto, a análise dos projetos em colegiados técnicos funciona, essencialmente, como uma mão de tinta fresca destinada a ocultar decisões apriorísticas, adotadas na esfera política.
Vaccari é um acaso deplorável, o bandido oportunista que se esgueirou por uma janela entreaberta no santuário do “interesse nacional”? No elenco de financiamentos do BNDES no exterior, destacam-se países carentes de instituições independentes de controle sobre os negócios estatais. A lista abrange, entre outros, os casos notórios de Venezuela, Cuba e Angola, cujos regimes não precisam prestar contas a ninguém. Nesses países, quantos Vaccaris cobraram, alegres e soltos, o “imposto partidário” sobre os recursos desembolsados pelo banco público brasileiro?
Evidentemente, a Lava Jato jamais poderá responder a essa pergunta. Com a palavra, o BNDES.
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