Quem é a favor da democracia deve ser a favor da redução da maioridade penal – afinal, segundo pesquisas de opinião, esta é a posição da maior parte dos brasileiros. Estas afirmações são corretas? Para responder, é preciso antes esclarecer qual democracia foi instituída com a Constituição de 1988.
Em primeiro lugar, é fundamental ter claro que “democracia” é um termo cujo significado está em disputa há séculos. Porém, ao longo do século 20, após as tragédias do Holocausto e do fascismo, entende-se que um sistema político, para ser democrático, exige alguns compromissos: a vontade da maioria deve respeitar os direitos fundamentais das minorias, para que não se repitam os acontecimentos do século passado. As democracias que vieram após a Segunda Guerra – e, no Brasil, após a ditadura – buscaram promover uma democracia constitucional que também é chamada de Estado democrático de direito.
Ao prever que a República Federativa do Brasil é um Estado democrático de direito, fundada na igual dignidade humana de todos, a Constituição demanda um compromisso com a promoção dos direitos fundamentais de todos os cidadãos. Este compromisso visa o bem de todos e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Estas obrigações decorrem dos primeiros artigos da Constituição e não podem ser esquecidas no momento de compreender qual tipo de democracia vamos construir neste país.
Nas últimas semanas, contudo, várias propostas legislativas têm sido defendidas com base em uma concepção de democracia que já foi a predominante, mas que não está de acordo com a Constituição – ela pode ser chamada de “concepção majoritária”. Para o majoritarismo, a democracia é o resultado de uma votação. Partindo da premissa correta de que a democracia é o governo do povo, chega-se à conclusão errada de que qualquer votação expressa a vontade popular. Ora, ninguém afirmaria que todas as barbaridades cometidas pelos nazistas ou feitas por Pinochet no Chile foram todas manifestações democráticas. De acordo com esta visão, pesquisas de opinião (como aquelas feitas por institutos em época de eleição) bastariam para expressar qual é a vontade do povo.
Não obstante, o majoritarismo parece reduzir a democracia à estatística, o que é equivocado. Quando os cidadãos manifestam sua opinião para responder uma pesquisa, geralmente eles nem sequer dispõem de informações para responder a pergunta. E a democracia fica reduzida a isso. Se a democracia fosse somente o voto, não haveria qualquer sentido em se fazer campanhas eleitorais antes de elegermos os nossos representantes. Esta visão equivoca-se por esquecer que o voto pressupõe algo muito importante: um debate.
Podemos chamar de deliberativa uma concepção de democracia mais adequada à Constituição. Segundo ela, antes de haver a votação é necessário que haja um debate público e robusto das ideias, para que os cidadãos possam expor os seus pontos de vista e possam submetê-los à crítica de outros cidadãos que têm o igual direito de se manifestar sobre que rumos querem dar para o país. Um debate público é feito às claras, no rádio e na televisão, nas escolas e em outros espaços de formação, mas o principal espaço para ele é a esfera pública. Ele só poderá ser robusto se para os argumentos apresentados forem ofertados contra-argumentos. Ainda segundo essa concepção, para que uma decisão ganhe o adjetivo de “democrática”, ela precisa permitir que todos os possíveis afetados possam se manifestar sobre ela (caso queiram).
O majoritarismo parece reduzir a democracia à estatística, o que é equivocado
A visão deliberativa da democracia vai muito além da visão majoritária, mas também congrega as dimensões representativas e participativas da democracia presentes na nossa Constituição. Ela reúne essas dimensões da democracia através do debate, que pressupõe a participação, mas que também não exclui a representação institucional – muito pelo contrário: a pressupõe para existir.
No debate sobre a possibilidade da redução da maioridade penal tem predominado a visão majoritarista de democracia. Como exposto, esta visão pobre e inconstitucional da democracia tem defendido que basta alguns congressistas se manifestarem a favor da proposta que será tomada a decisão mais democrática. Para quem está comprometido com a democracia e com os direitos fundamentais (portanto, com a Constituição), não é possível concordar com a possibilidade de se modificar um tema tão importante com um debate tão pobre.
Os defensores da proposta de mudança da maioridade penal devem explicar e refutar vários entendimentos e premissas que não são nem de longe óbvias. Por exemplo: por que a maioridade penal não é uma cláusula pétrea, como entende a maior parte dos constitucionalistas? A redução ocorreria para todos os crimes ou para qualquer um? Esta mudança iria permitir o pleito à autorização para dirigir, como prevê o art. 140 do Código de Trânsito Brasileiro? Como ficam os tratados e convenções de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário e que pressupõem a imputabilidade penal a partir dos 18 anos? Os congressistas que defendem a proposta vão trazer argumentos para refutar os dados trazidos por especialistas em segurança e do Conselho Federal de Psicologia sobre o tema? Por fim, é imprescindível que seja esclarecido o que os “representantes” do povo entendem por respeitar o art. 227 da Constituição, que prevê a prioridade absoluta às crianças e adolescentes e o compromisso de todos – Estado, comunidade e família – para assegurar os seus direitos.
Entende-se que um debate robusto pressupõe, no mínimo, a resposta a tais questões. Uma decisão tão importante como essa não pode ser tomada às pressas, sem que isso seja esclarecido, sob pena de violarmos padrões mínimos de democracia. Todas as instituições devem contribuir para este debate, sobretudo o Supremo Tribunal Federal, que pode e deve estimular a reflexão coletiva se for provocado em um mandado de segurança ou, se aprovada a emenda, por meio de uma decisão em uma ação direta de inconstitucionalidade.
A falta de debate que tem imperado nesta discussão por si só já justifica o questionamento sobre o caráter “democrático” de eventual redução da maioridade penal e, portanto, da constitucionalidade da medida. Todavia, para os defensores da democracia deliberativa, o comprometimento com a Constituição demanda mais do que isso.
Em um Estado democrático de direito só há democracia se a lei for fruto da vontade popular, desde que respeitados os direitos e garantias fundamentais da maioria e, sobretudo, das minorias. Só isso parece justificar a inconstitucionalidade da PEC 171/1993. Contudo, a Constituição que constitui a nossa República exige que ela seja fundamentada na igual dignidade humana de todos, que seja construída uma sociedade mais justa, livre e solidária. A PEC 171/1993 vai na contramão de tudo isso. Portanto, quem é a favor da democracia e da justiça, nos termos da Constituição, deve discordar dela. A escolha – e as consequências daí advindas – cabe a todos nós.
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