A querela jurídica em torno da questão do impeachment, a disputa sobre se o impeachment da presidente Dilma nas atuais circunstâncias configuraria ou não golpe e ruptura institucional, levanta o problema ainda mais controverso acerca da relação entre direito e política. Pois o impeachment é uma figura mista. Mezzo jurídico, sendo previsto e tipificado pela lei e fundando-se sobre a acusação de que determinados atos da Presidência ferem a Constituição; mezzo político, e não apenas pela razão mais óbvia de que seu julgamento passa pelas instâncias políticas da Câmera e do Senado, mas porque a lei especial que define os crimes de responsabilidade é vaga o bastante para dar margem a muita discussão – uma discussão em última instância política, como argumentarei – sobre os casos.
Nessa intersecção entre o direito (o sistema legal) e a política, nem sempre é muito claro o que é jurídico e o que é político, e até que ponto estamos dispostos a admitir que esses campos se misturam. Há quem diga que o direito é sempre político, na medida em que se faz e se aplica por meio de juízos e decisões que extrapolam a matéria prevista e regulada pela lei. Mas há pelo menos um sentido em que não parece admissível dizer que o direito é político.
No “Ato pela Democracia” organizado pela Faculdade de Direito da UFPR, em contestação a determinados procedimentos da Operação Lava Jato – especialmente a condução coercitiva do ex-presidente Lula e o vazamento seletivo dos conteúdos das delações, dos quais se fez um notório uso no sentido da mobilização da opinião pública a favor do impeachment –, denunciou-se o que na ocasião se nomeou um indevido uso político do direito. Sou signatária da Carta de Curitiba, resultante do ato. Concordo, portanto, com a ideia de que o direito não possa ser usado politicamente, no sentido de favorecer um lado ou outro de uma disputa política. Este não parece ser um ponto em disputa. Alguém diria o contrário? Pode-se discordar que o direito tenha sido politicamente instrumentalizado pelo juiz Sergio Moro, mas creio que ninguém discordaria da tese de que a instrumentalização política do direito, quando é o caso, deva ser denunciada. É uma espécie de pressuposto do jogo jurídico – um preceito de justiça, para alguns – que o direito (entenda-se: o sistema legal) não seja partidário.
A política perpassa o direito precisamente nas suas bordas: nos atos que fazem e aplicam a lei
- Cardozo vai à feira (editorial de 6 de abril de 2016)
- O exemplo presidencial (artigo de Ives Gandra Martins, publicado em 6 de abril de 2016)
- Estado Ideológico de Direito (coluna de Francisco Escorsim, publicada em 4 de abril de 2016)
- A esquerda e a legalidade (artigo de Monica Stival, publicado em 1.º de abril de 2016)
Porém, por mais incontroversa que seja, a demanda de imparcialidade política do direito parece entrar em rota de colisão com a percepção de muitos – e que é também minha – de que na origem histórica das leis, assim como em sua aplicação – enfim: na relação da lei com as circunstâncias –, estão decisões que são em última instância políticas, ou seja, decisões que envolvem algum tipo de tomada de posição, aberta à controvérsia e sujeita a disputa (sendo este último aspecto o que confere a tais decisões o seu caráter propriamente político). O direito se arvora, assim, a uma neutralidade abstrata que, na sua relação com os fatos, ele visivelmente não tem.
Não se trata, com isso, de dizer que o direito é um engodo, que não cumpre o que promete, e de denunciar o seu caráter político mal dissimulado na prática. Trata-se de dizer que o direito é necessariamente político e que ganhamos ao pensá-lo dessa forma. Na origem do direito, no ato legislativo, bem como nas práticas judiciárias de sua aplicação – nas bordas do sistema jurídico, por assim dizer, ali onde o sistema toca os fatos, nas circunstâncias em que é feito e aplicado –, há decisões a serem tomadas e essas decisões não podem ser reduzidas a um solo consensual e incontroverso, sendo abertas a disputa e sustentadas por posições e visões de mundo – racionalidades, para emprestar uma expressão de Monica Stival em artigo recente – muitas vezes inconciliáveis (daí porque a decisão em questão não seja de ordem moral, como alegam alguns, mas propriamente política). Não apenas esse caráter político do direito não envolve engodo, como o engodo estaria, ao contrário, em não reconhecer aquilo que é bem visível a olho nu, em escamotear ou pôr para debaixo do tapete a percepção de que o espaço jurídico – para emprestar mais uma formulação feliz de Monica Stival no mesmo artigo – é perpassado pela política. Acrescento à afirmação a precisão de que a política perpassa o direito precisamente nas suas bordas: nos atos que fazem e aplicam a lei.
Mas, se é assim, o que dizer da exigência de neutralidade e apartidarismo do direito? Assumir que o direito é perpassado pela política não nos obrigaria a aceitar que ele pode se alterar segundo as circunstâncias e colocar-se a serviço dessa ou daquela posição política? Meu ponto aqui é o de indicar que uma coisa não se segue da outra – a tese de que o direito é perpassado pela política (que me parece boa) não implica a tese de que se possa fazer um uso político do direito.
A questão de saber se as chamadas “pedaladas fiscais” constituem ou não crime de responsabilidade por parte da presidente Dilma presta-se perfeitamente à ilustração desse ponto: o direito é perpassado pela política, mas não se reduz a ela. A decisão jurídica é, nesse caso, perpassada pela política porque, como argumenta Monica Stival, ela não é meramente técnica e não se decide por uma simples aplicação mecânica da lei. Há uma disputa política em jogo: trata-se mesmo de irresponsabilidade fiscal? Uns dirão que sim, outros que não, a depender do que entendem ser as responsabilidades prioritárias de um governo ou as estratégias aceitáveis, o que, por sua vez, depende de racionalidades, visões de mundo, valores, interesses, decisões estratégicas diferentes. A interpretação e aplicação da lei que tipifica o impeachment estão em disputa – como, aliás, são também sujeitas a disputa muitas das decisões legais tomadas no dia a dia dos tribunais. Esta mãe é irresponsável e deve perder a guarda dos filhos? Uma certa visão de mundo, uma concepção da maternidade e das condições indispensáveis ao crescimento das crianças orienta uma tal decisão, que permanece, em função disso, disputável e, nesse sentido, política. Sob esse aspecto, a decisão sobre o impeachment não é mais política que as decisões jurídicas da vara familiar.
Aceitar que o direito é político nas bordas é, contudo, muito diferente de dizer que não haja distância e diferença entre direito e política, que não haja um espaço do sistema jurídico em que o direito não seja transpassado pela política. Mesmo admitindo que por trás dos sistemas legais estejam decisões políticas, o que entendemos por direito é, ainda assim, um sistema, com seus princípios gerais e derivados e exigências normativas internas. Que a lei deva se aplicar a todos igualmente e não deva ter partido é um pressuposto formal, interno ao direito, tal como hoje o entendemos, enquanto um sistema legal positivo. Trata-se de um princípio que supomos estar na base do jogo jurídico das democracias contemporâneas – algo que sustenta seus sistemas jurídicos e que diz respeito ao centro, não mais às bordas, do sistema. Retirado esse princípio, o sistema jurídico se desfaz e já não se mostra mais capaz de oferecer garantias e seguranças. Daí que, quando as decisões jurídicas se mostram parciais, elas se façam juridicamente contestáveis. O princípio da imparcialidade ou da aplicação igual do direito é algo de que não se pode abrir mão sob pena de o direito deixar de ser direito.
Voltando ao caso das chamadas “pedaladas”, o que importa do ponto de vista desse princípio fundamental é se outras condutas semelhantes (outras “pedaladas”) foram tratadas da mesma forma (consideradas crimes de responsabilidade) e o que justificaria um tratamento diferente, dado o princípio da aplicação igual do direito. Novamente aqui entra interpretação e, portanto, política. Alguns dizem que as “pedaladas” da Dilma são diferentes em grau e mais irresponsáveis que as praticadas por outros governos; outros dizem que a diferença é casuística e serve a conveniências partidárias. Mas o que quero ressaltar é que os argumentos de uma parte e outra não são simetricamente políticos. O primeiro diz respeito às bordas do direito – incide sobre a aplicação da lei ao caso – e é estritamente político. O segundo toca ao coração do direito – a um princípio fundamental – e não é apenas político, mas, antes de tudo, jurídico. O que se alega, nesse caso, é que o jogo jurídico pressupõe a aplicação igualitária da lei, sob pena de se desfazer, caso em que não diremos mais que o direito é perpassado pela política, mas que deixou de ser direito para se tornar apenas política. É isso o que quer dizer que o impeachment, nas atuais circunstâncias, que incluem os procedimentos desiguais da Lava Jato mobilizados a favor do impeachment e diversos outros indícios de partidarização do direito, é golpe.
Acrescentaria, ainda, que mais um indicador disso está em que o único argumento que se tem para justificá-lo recai justamente sobre uma questão tão controversamente política e sujeita a disputa, que é a de saber se as “pedaladas” configuram ou não crime de responsabilidade. Nesses casos em que o direito é tão fortemente transpassado pela política, é preciso redobrar a cautela jurídica e o zelo com o princípio jurídico da imparcialidade e salvar o direito da política.
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