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Lições da “guerra estúpida”

Barack Obama qualificou-a como a “guerra estúpida”. O Relatório Chilcot, um inquérito ordenado pelo governo britânico em 2009 sobre a invasão e ocupação do Iraque, publicado há uma semana, oferece as provas da extensão da estupidez. As suas principais lições diretas e indiretas conectam o passado recente ao presente, iluminando o colapso da ordem geopolítica no Oriente Médio e as encruzilhadas da guerra contra o Estado Islâmico (EI). Eis um sumário delas.

1. A decisão da invasão baseou-se numa mentira deliberada. O argumento apresentado pelos EUA, sobre a reativação do programa de armas de destruição em massa (WMD) de Saddam Hussein, foi impugnado pelas 700 inspeções prévias conduzidas pela ONU. Hans Blix, chefe de comissão de inspeção, diagnostica o que aconteceu, usando frases diplomáticas: “Ainda não tenho certeza de que a existência de WMD foi o motivo primário para a ação militar. Talvez a mudança de regime tenha sido o motivo determinante”. O Relatório Chilcot evidencia que a morte de “ao menos 150 mil iraquianos, a maioria deles civis” e o deslocamento de “mais de 1 milhão” derivaram de um cálculo geopolítico de George W. Bush e de seu círculo de neoconservadores na sequência dos atentados do 11 de setembro de 2001.

Os EUA e seus aliados britânicos pavimentaram a estrada para a territorialização do jihadismo

2. As agências de inteligência americanas e britânicas “intoxicaram-se” umas às outras para produzir os falsos positivos que convinham aos seus governos. No lugar de prestar atenção às conclusões dos inspetores da ONU, os serviços de espionagem dobraram-se às prioridades definidas de antemão pela Casa Branca, compartilhando entre si apenas os tênues indícios politicamente convenientes. Depois, na esfera governamental, como explica Blix, seus “pontos de interrogação e advertência” foram substituídos “por pontos de exclamação”. No fim, pelo menos o primeiro-ministro britânico Tony Blair passou a acreditar sinceramente na mentira sobre as WMD. A lição de confiar nas organizações multilaterais parece ter sido aprendida no caso das negociações nucleares com o Irã.

3. O governo britânico inclinou-se à Casa Branca, desempenhando papel auxiliar crucial para a deflagração da guerra. Numa nota privada dirigida a Bush em 28 de julho de 2002, 45 dias antes do discurso do casus belli pronunciado pelo presidente americano no Conselho de Segurança da ONU (CS), Blair prometeu: “Estarei com você, seja o que for”. As palavras esclarecem a sequência, na qual o premiê britânico fez sucessivas concessões ao presidente americano, renunciando às suas dúvidas pessoais, abdicando de exigir um pronunciamento final do CS e atropelando os processos decisórios de seu próprio gabinete de governo. A “guerra estúpida” foi uma guerra ilegal, pois “Saddam Hussein não representava perigo iminente” (Chilcot). Bush talvez a deflagrasse de qualquer modo, mas Blair deu-lhe inestimável contribuição diplomática. De fato, em nome da aliança estratégica de Londres com Washington, Blair submeteu o interesse nacional britânico ao americano e abriu um atalho para os EUA circundarem a oposição da maioria do CS. Os britânicos deveriam ter refletido sobre isso antes de desistir da Europa.

4. O planejamento da invasão desconsiderou os inúmeros alertas sobre as consequências da desestabilização do Estado iraquiano. “O mundo é melhor e mais seguro sem Saddam Hussein”, declarou Blair na hora da divulgação do Relatório Chilcot, repetindo o velho argumento de Bush. Saddam era um tirano sanguinário, mas o mundo gerado pela invasão é, certamente, muito menos seguro. Como tantos avisaram à época, a ocupação do Iraque ampliou a influência regional do Irã, cindiu a sociedade iraquiana ao longo de linhas sectárias e excluiu politicamente os sunitas, criando um vácuo que foi ocupado por organizações jihadistas. A al-Qaeda e, em seguida, o EI implantaram-se no norte sunita do Iraque. O califado proclamado pelo EI é um fruto da combinação da ocupação do Iraque com a guerra civil na Síria. Os EUA e seus aliados britânicos pavimentaram a estrada para a territorialização do jihadismo.

5. A “guerra estúpida” travou o sistema internacional de segurança, limitando a capacidade de ação das potências. Obama elegeu-se nos EUA sob o compromisso de encerrar as aventuras militares no Iraque e no Afeganistão. Na opinião pública americana, como na britânica, firmou-se um férreo consenso contrário ao envio de tropas de combate terrestres em missões no exterior. A operação militar na Líbia, destinada a prevenir massacres de civis, ficou circunscrita a bombardeios aéreos e, na ausência de forças de estabilização em terra, a derrubada de Muammar Kadafi converteu o país em palco de uma guerra de milícias pontilhada pela infiltração de grupos jihadistas. Confrontado com as resistências domésticas, Obama recuou em sua promessa de reagir ao uso de armas químicas pelo regime sírio de Bashar Assad, o que não ajudou a encurtar a guerra civil no país.

6. A “guerra estúpida” de ontem impede, hoje, a guerra necessária contra o EI. Sem o trauma do Iraque, o CS já teria autorizado uma operação militar terrestre internacional para erradicar o EI da Síria e do Iraque. Diante das atrocidades jihadistas, a Rússia não teria como exercer seu poder de veto contra uma resolução americana apoiada pelas potências europeias. Mas, tantos atentados depois, essa hipótese continua afastada por líderes políticos que experimentam os efeitos desmoralizantes das decisões de Bush e Blair. A lenta guerra de atrito contra os jihadistas é o fruto da guerra de “choque e pavor” iniciada há 13 anos com o bombardeio de Bagdá.

Chilcot escreveu para os britânicos, mas decifrou a trama de uma catástrofe definidora das primeiras décadas do século 21. Provou, no mínimo, que as democracias são capazes de olhar para trás, encarando seus erros desastrosos e seus crimes.

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