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O muro de Dover

Um muro caiu em Berlim e, então, um outro foi erigido em Dover. O “Brexit” será descrito assim nos futuros manuais de História. As falésias brancas de Dover, formações calcárias riscadas por quartzitos, erguem-se mais de 100 metros acima das águas do Canal da Mancha, que os separam de Calais, na França. Na evacuação de Dunquerque, no fim de maio de 1940, 340 mil soldados britânicos e franceses atravessaram o estreito, rumo a Dover, sob assédio das forças alemãs. Mais de meio século depois, a inauguração do Eurotúnel, que corta os arredores de Dover, simbolizou a união entre as Ilhas Britânicas e a Europa continental, cujo arcabouço geopolítico estabelecera-se em 1973, com o ingresso britânico no que hoje se chama União Europeia (UE). O “Brexit”, um ato de destruição, essa Dunquerque imposta pela democracia, é um golpe contra a ordem mundial criada no pós-guerra.

O plebiscito do “Brexit” não era necessário, pois a polêmica sobre a UE tinha escassa ressonância fora das fileiras do Partido Conservador. A solução plebiscitária decorreu de uma aposta irresponsável do primeiro-ministro David Cameron, como um golpe fatal contra a corrente eurocética de seu partido. No lugar disso, Cameron colheu uma derrota pessoal definitiva, uma duradoura cisão entre os conservadores, a ascensão da direita xenófoba agrupada no Ukip e o espectro da dissolução do próprio Reino Unido.

Dois anos atrás, os eleitores escoceses rejeitaram a opção separatista justamente para permanecer na UE. O “Brexit” significa que, por terem votado daquele modo, sairão da UE junto com o Reino Unido. No horizonte imediato, assoma um novo plebiscito sobre a independência escocesa, no qual a cisão com o Reino Unido aparecerá como único caminho para seguir na UE. Um Reino Desunido e uma Pequena Inglaterra insular surgem como frutos prováveis do “Brexit”.

O lugar no pódio é de Nigel Farage, o líder dos ultranacionalistas do Ukip

Mas a Escócia é só um lado do problema. Na margem oposta do Canal do Norte, o “Brexit” coloca em risco a estrutura de estabilidade na Irlanda do Norte. O Acordo da Páscoa, de 1998, encerrou o conflito entre protestantes (unionistas) e católicos (nacionalistas), ligando a Irlanda britânica à República da Irlanda por instituições supranacionais apoiadas sobre a cidadania europeia comum e o livre fluxo de bens e pessoas. O pilar oculto do acordo tende a desaparecer com o “Brexit”, que produzirá uma “fronteira dura” entre as Irlandas e converterá os católicos da Irlanda do Norte em estrangeiros na Irlanda do Sul.

Atrás do resultado do plebiscito, espreita uma “excepcionalidade inglesa” incrustada no passado distante. Os defensores do “Brexit” insistiram na ideia de “recuperar o controle”, tocando no nervo sensível do conceito de soberania. Desde a Magna Carta, a Inglaterra elaborou uma identidade política organizada em torno de um foco único de soberania, que é o Parlamento. Na Europa continental, em contraste, a autoridade política dividiu-se em complexas camadas superpostas, entrelaçando ducados, principados e reinos. A submissão parcial do Parlamento nacional a Bruxelas — isto é, às instituições europeias — nada tem de chocante na experiência histórica alemã, mas representa uma anomalia para os ingleses. Nesse sentido, é temerário prever que o “Brexit” produza efeitos em cascata, derrubando uma a uma as peças que formam a coleção da UE.

A “história profunda” conta, mas existe a história recente. O projeto da unidade europeia recebeu impulso decisivo do “fator Stalin”, ou seja, da percepção de que a União Soviética representava uma ameaça existencial às democracias ocidentais. O Tratado de Paris de 1951, ponto de partida da aventura europeia, foi firmado apenas dois anos depois do Tratado do Atlântico Norte, que criou a Otan e conectou aos EUA o destino geopolítico da Europa Ocidental. A Otan, por sua vez, nasceu no berço da primeira grande crise da Guerra Fria: a bipartição da Alemanha em dois Estados. “Europa”, na Guerra Fria, significava uma fortaleza protegida pelos mísseis americanos e pelas instituições supranacionais da Comunidade Europeia. O Reino Unido, que ingressou nessa fortaleza sob a dupla pressão de Washington e do desmantelamento do Império Britânico, decide abandoná-la quando já não mais existe a ameaça original.

O muro de Dover será construído com os materiais de entulho do finado Muro de Berlim. No canteiro de obras, ecoarão canções nostálgicas sobre o Parlamento e o Império, bem como invocações odientas contra os imigrantes. O “Brexit”, apesar de tudo, exprime algo mais que o “excepcionalismo inglês” – e, por isso, foi celebrado na outra margem do Canal da Mancha por um cortejo de partidos nacionalistas. “Para aqueles que disseram que tudo é irreversível, que a UE é irreversível, o povo britânico mostrou o caminho da saída”, comemorou Marine Le Pen, a líder da Frente Nacional, candidata à presidência francesa nas eleições de 2017. Na longa sombra das falésias de Dover, movem-se os representantes de uma outra Europa, eclipsada desde o pós-guerra, mas que nunca desapareceu.

Boris Johnson, o chefe conservador da campanha do “Brexit”, já parece arrependido de seu triunfo, como tantos britânicos que votaram pela saída. Pateticamente, ele anunciou uma “intensificação” da cooperação do Reino Unido com a Europa, como se os cacos pudessem ser colados, restaurando a taça estilhaçada. Johnson entendeu errado: o lugar no pódio não é dele, mas de Nigel Farage, o líder dos ultranacionalistas do Ukip. O plebiscito provou, para júbilo de Vladimir Putin, que tudo é reversível, inclusive a UE.

“O fato de que a fragmentação não é mais inimaginável deve gravemente nos preocupar a todos.” Jeanine Hennis-Plasschaert, a ministra da Defesa da Holanda, entendeu certo. Dover é sobre o Reino Unido, mas também sobre o futuro da Europa e a integridade dos valores políticos que propiciaram a reconstrução do Ocidente depois da maior catástrofe do século 20.

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