A morte trágica de Zilda Arns a poupou de ver o trabalho ao qual dedicou tantos anos de sua vida correndo o risco de ser destruído porque os governantes não são capazes de separar o joio do trigo
Em matéria de administração pública, o Brasil parece estar solidamente fincado no Primeiro Dia da Criação. Nada evolui, novas espécies não vêm enriquecer o universo, não existe experiência prévia nem memória coletiva com a qual se possa aprender. Os mesmos erros se repetem sistematicamente, os mesmos fracassos se sucedem, as mesmas e ingênuas esperanças se renovam de tempos em tempos.
Agora, estamos vendo organizações respeitáveis e utilíssimas como a Pastoral da Criança e o Dieese passarem por dificuldades financeiras porque estão com seus repasses governamentais bloqueados, até que o governo federal consiga entender, minimamente, o tamanho da lambança e da roubalheira cometida por ONGs chapa-branca acobertadas por políticos e dirigentes partidários desonestos.
A única coisa que surpreeende no episódio dos escândalos do Ministério dos Esportes, do Trabalho e de outros que ainda virão à tona, é que alguém ainda se surpreenda com eles. Há muito tempo eles já vinham sendo anunciados e denunciados na imprensa, inclusive por este modesto escriba de província.
Primeiro ato: cria-se uma ONG, consegue-se um contrato com um ministério ou agência pública amiga, pega-se os recursos, repassa-se para empresas de fachada que os gastam como querem e bem entendem, sem licitação e sem controle efetivo que verifique a real existência do serviço prestado. Então, o dinheiro desaparece como em um truque de Houdini. Segundo ato dessa tragicomédia: os desmandos são tão frequentes e gritantes que o governo tem de fazer algo e o faz com a truculência do cirurgião que para extirpar um tumor no cérebro, decepa a cabeça do paciente. Para estancar a hemorragia dos convênios fajutos, decepa-se a Pastoral da Criança e o Dieese, por exemplo.
Na realidade, o que estamos vendo é a monótona repetição do que vem acontecendo há décadas: como a administração pública é, inevitavelmente, lenta, burocratizada, ritualista e mais comprometida com a forma do que com a substância das coisas, de tempos em tempos surge uma iniciativa modernizadora que procurar emprestar dinamismo, flexibilidade e rapidez à ação dos governos. Logo a flexibilidade se transforma em abuso, o poder de decidir rapidamente passa a ser utilizado para exercitar as mais diversas formas de clientelismo e favoritismo. Então, quando esses abusos chegam a um nível insuportável, vem o governo, toca o pé no freio, restaura as práticas burocráticas imobilizantes e os mesmos processos lentos, convolutos e ritualistas que os "modernizadores pretendiam alterar.
Relembrando: na década de 30 do século 20, Getúlio criou as autarquias para dar dinamismo a setores estratégicos e assim nasceram o DNER, o DNOS, o DNEF, o DNAE e dezenas de organizações altamente flexíveis; muitas delas viraram alvo de enormes abusos até que as asas das autarquias foram cortadas anos depois e elas passaram a ser muito parecidas com as organizações públicas tradicionais. Vieram as empresas públicas e mistas e as fundações, com a agilidade decorrente de sua natureza jurídica privada. Algumas foram fundamentais para modernizar o país como a Eletrobras e a Embrapa, entre nós a Copel e a Telepar; outras surgiram apenas para gozar das liberdades para agir sem nenhum ou com muito pouco controle. Veio a Constituição de 1988 e a legislação depois dela e reduziram a agilidade administrativa desses tipos de organização a zero ou quase zero.
A lambança das ONGs chapa-branca é apenas um capítulo a mais nessa interminável tragicomédia. O que dá pena é que, por ser incapaz de coibir os abusos tempestivamente e de maneira eficaz, o Estado acabe por destruir o trabalho honesto e bem intencionado de centenas ou milhares de ONGs do Bem.
A morte trágica de Zilda Arns, a admirável criadora da Pastoral da Criança, a poupou de ver o trabalho ao qual dedicou tantos anos de sua vida e de seu amor pelo próximo correndo o risco de ser destruído porque os governantes não são capazes de separar o joio do trigo. Pior que isso, permitem que se plante mais e mais joio.
Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do doutorado em Administração da PUCPR.
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