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| Foto: Nicholas Kamm/AFP

O ano termina célere e impiedoso. No Hemisfério Norte, a felicidade provisória da espera do Natal se confunde com um dilúvio de incertezas, decorrentes de fatos improváveis, precipitando a chegada de um inverno de sombras avassaladoras. Deste lado, a eleição de Trump; do outro, a necessidade de dar curso ao Brexit, dois eventos tão imprevisíveis quanto desestabilizadores da ordem mundial, pondo em xeque o multilateralismo baseado na racionalidade e no diálogo. Embora cediço que fatos históricos têm valoração a posteriori, é inelutável que passamos a viver a plenitude de uma nova era da incerteza.

Enquanto buscam-se culpados pelos desastres eleitorais, no Reino Unido, como consequência do referendo que decidiu pelo “não” à Europa, vencido por pequena maioria e com grande absenteísmo, a primeira-ministra tergiversa, entre a indecisão e o medo, sem iniciar de fato a rota desconhecida rumo à porta de saída. De fato, dar curso à aplicação do artigo 50 do Tratado da União Europeia, que cuida da questão, não é tarefa fácil. Como daquelas normas escritas para não serem usadas, o artigo diz o quê sem indicar como. Presente já na Convenção de Viena sobre direito dos tratados, é possível estimar que tal norma era mesmo desnecessária.

A felicidade provisória da espera do Natal se confunde com um dilúvio de incertezas

Se no plano formal a questão é nebulosa, muito maiores são as dúvidas materiais relacionadas à economia e à macropolítica, até pela impossibilidade de romper-se o pertencimento inexorável do Reino Unido à Europa. A geografia é um fato. À fatalidade dos mapas somam-se outras certezas: a renúncia ao mercado de 500 milhões de pessoas, a perda dos afetos de Bruxelas, de bondades pontuais a Londres, o isolamento em segurança e em imigração, a vulnerabilidade da libra, os nefastos efeitos internos do discurso separatista, todas essas são decorrências indesejáveis no curto prazo, e que por certo não irão conduzir os britânicos ao melhor dos mundos.

Nos Estados Unidos, à medida que o bálsamo da vitoria vai cicatrizando feridas republicanas, surgem apoios responsáveis ao novo presidente, herdeiro de desconfiança inédita na história da grande democracia do Ocidente. Nesse clima, o estilo atípico do vencedor, adepto do confronto pelo confronto, também gera perplexidades e preocupações. Reordenar e pacificar a sociedade americana e o Congresso é agora, em primeiro momento, tarefa inadiável. E parece ironia que o símbolo do GOP, do Partido Republicano de Trump, seja justamente um elefante: agora, um elefante para reordenar a loja de cristais.

No outro lado do Atlântico, a perplexidade é a mesma que por certo irá afligir o historiador do futuro, que indagará por que a política britânica permitiu, em conjuntura de colapso causado pelo terrorismo e pela crise de refugiados, que se realizasse consulta popular acerca de questão estrutural tão essencial. Seria como, em comparação fácil, propor a abolição de impostos em meio a uma crise econômica. O Brexit, ademais, implica projetar, com consequências imprevisíveis, um Zeitgeist de separatismo, de ruptura e de repristinação incontrolável de velhos nacionalismos adormecidos. Todo o contrário daquilo a que deve aspirar um “Reino Unido”.

A esperar a passagem célere da estação fria, o mundo olha perplexo para o Ocidente boreal, velho fiador da ordem mundial, em manifesta ruptura de alguns de seus standards, com consequências preocupantes urbi et orbi. Que venha logo a primavera.

Jorge Fontoura é doutor em Direito Internacional.
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