José Eduardo Cardozo, ministro advogado-geral da União, em entrevista concedida imediatamente após a decisão da Câmara dos Deputados que admitiu a abertura do processo de impeachment da presidente da República, afirmou que houve uma soma de confusões sobre os fatos e a prova, a ponto de ficar caracterizada a existência de crime de responsabilidade quando, efetivamente, tal não teria ocorrido. Agora, na fase mais definitiva a tramitar no Senado Federal, tudo ficará, na versão do ministro, devidamente esclarecido. Acho que um bom caminho, para o cidadão entender o alegado embrulho, passa por algumas premissas, a saber:

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A ideia de que o presidente da Câmara recebeu e determinou o processamento da denúncia por vingança ao não ter recebido os votos dos parlamentares do PT, barrando o processo ético que lhe é movido naquela Casa, não se sustenta. O Supremo Tribunal Federal tem entendimento pacífico de que, por sua natureza política, o processo de impeachment não comporta as alegações de impedimento e suspeição (vingança é fundamento para sua alegação) previstas no Código de Processo Penal; no caso, a defesa da presidente está, sim, a despeito de se dizer juridicamente confortada, fazendo uma contextualização de exclusiva natureza política, tanto que se assegurou o voto no plenário ao relator, aos membros da Comissão Especial que votaram pela aprovação de relatório e ao próprio presidente da Câmara, reforçando a tese do STF .

O crime de responsabilidade se dá por ação ou omissão do agente político na gestão da coisa pública

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A alegação de que as tais “pedaladas fiscais” foram praticadas por outros governos e não tiveram a censura do Tribunal da Contas da União, nem qualquer sanção penal ou de responsabilidade, e, por isso, não poderiam ser usadas para incriminar a presidente da República se resolve pela máxima de que um erro não justifica o outro; no caso, um crime que não foi punido não exclui nem justifica a continuação de sua prática, alegando-se que teria havido um esvaziamento da punibilidade. Aliás, esta linha de raciocínio foi usada no mensalão, quando se dizia que o financiamento das campanhas eleitorais, pelo caixa dois, era uma prática corriqueira e que, por ela, os partidos políticos nem os agentes políticos teriam sido punidos, por isso a sua adoção. Aqui, também, se flagra argumento de natureza política não jurídica.

A tese de que não houve dolo da presidente da República, nem que ela tenha se beneficiado patrimonialmente do resultado das “pedaladas fiscais”, também merece ser esclarecida. O crime de responsabilidade se dá por ação ou omissão do agente político na gestão da coisa pública, quando ele pratica atos que se revelam danosos à coletividade como um todo. O dolo, no caso das “pedaladas fiscais”, se reflete na edição de decretos sem número, proibidos na Lei de Diretrizes Orçamentárias e que, ao fim e ao cabo, autorizaram a abertura e remanejamento de créditos na perspectiva de captação de receitas do Tesouro Nacional que não aconteceram, a ponto de, no fim de 2015, ter havido mudança na Lei de Diretrizes Orçamentárias, alterando, para menos, a meta fiscal. O resultado foi um rombo nas contas públicas que, dizem os analistas econômicos, já tinha sido objeto de alerta, antes mesmo dos tais decretos que as ampliaram num ambiente político pré-reeleição da presidente. Não se há de cogitar, para a tipificação do crime de responsabilidade, o necessário benefício patrimonial pessoal do agente, porque se trata de mera conduta com resultado difuso, prejudicando a sociedade como um todo. A linha da defesa, menosprezando a inteligência do cidadão, trata o crime de responsabilidade como um crime de apropriação pessoal de coisa alheia, quando não é isso o que ocorre.

Já para o caso dos ditos contratos de prestação de serviços feitos com estabelecimentos bancários – no caso, o Banco do Brasil, do qual a União é acionista majoritária e controla o direito de voto nas assembleias gerais –, é notório que, independentemente da sua natureza jurídica e de como foi pactuado tal ajuste em termos de encargos, a mora é sempre contemplada com ônus adicionais. Esclareça-se que a teoria dos contratos não se rege pelo princípio do nominalismo, consagrado pela expressão latina do nomen juris dado por quem deles é parte integrante. O certo é o que resulta da intenção manifestada pelas partes, bem como, modernamente, salienta-se que os contratos bancários se revestem do aspecto de combinarem em um mesmo instrumento obrigações que extrapolam os tipos legais e demandam a aplicação de legislação não exclusiva à indicada pelo nome adotado pelas partes. Aqui, a legislação aplicável é a de contrato de prestação de serviços para repasse de recursos para programas sociais, com obrigações de conta corrente e de empréstimo, caso ocorra inadimplência, entre o Banco do Brasil e sua acionista majoritária, a União federal. A alegada violação, não autorizada pelo ordenamento jurídico brasileiro, teria ocorrido quando a União teria se tornado inadimplente, sujeitando-se às regras dos ônus de empréstimo/financiamentos previstas no aludido contrato com o banco por ela controlado.

Por fim, a sensação que eu tenho é de que o Senado Federal, salvo melhor juízo, acompanhará, no mérito, a decisão da Câmara Federal, se continuar a mesma linha de defesa da presidente da República tal como até aqui esboçada; lá estas questões serão, como diz o ministro da AGU, esmiuçadas e esclarecidas, com ampla defesa e contraditório, que segundo ele não foi admitido no STF pela natureza da decisão que ali seria tomada. Fica a questão: não seria o caso de mudar a defesa e o defensor pelo natural desgaste de ambos? Com a palavra, os interessados.

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Derocy Giacomo Cirillo da Silva é procurador da República aposentado.