Centrado no argumento de que a situação econômica da municipalidade é crítica, um artigo publicado no dia 3 de janeiro pelo secretário municipal de Planejamento, Finanças e Orçamento, Vitor Acir Puppi Stanislawczuk, traça um paralelo entre a situação econômica da cidade com o acidente trágico do Titanic. Conhecida por documentários e filmes de Hollywood, a cena em que os músicos tocaram para acalmar os passageiros até perecerem “junto com o imenso navio” é utilizada para justificar, alegoricamente, o fim da Oficina de Música de Curitiba. “Escolheremos continuar a ouvir a sinfonia enquanto o nosso navio segue a trágica sina?”, questiona o secretário.
O que ele esquece de frisar em sua tese é que o “ouvir da sinfonia” nada tem a ver com a causa do acidente. O desprezo das condições meteorológicas, o ignorar de mensagens de alerta das outras embarcações (que sinalizavam a presença de icebergs na área), erros humanos nos procedimentos de emergência e a arrogância de uma cultura de liderança que julgava conhecer condições que desconhecia foram os principais motivos. O secretário assume que “nunca atend[eu] à Oficina de Música de Curitiba” – comentário desnecessário, pois isso fica evidente no artigo. Cabe-nos o papel de esclarecer, por exemplo, que os maiores beneficiados da Oficina são os membros da comunidade. É o povo da cidade de Curitiba. A maior parte dos docentes é de brasileiros. Nos concertos não há luxo. Nada de canapés. A grande maioria das atividades é promovida pelos alunos, pagantes. A Oficina é um programa com forte viés educacional, concedendo, inclusive, certificados de cursos de extensão da Universidade Federal do Paraná.
Em um mundo que tende ao elogio da pós-verdade e à deterioração dos referenciais universais, boa parte das cabeças pensantes em todas as grandes nações do mundo mostram-se preocupadas. Citando o filósofo Konrad Paul Liessmann na abertura do Festival de Salzburg, ano passado: “Quanta educação necessita a arte, quanta arte necessita a educação?”
Os maiores beneficiados da Oficina são os membros da comunidade. É o povo da cidade de Curitiba
Defender a manutenção da Oficina também expõe a necessidade de outras discussões. Causa-nos estranhamento a decisão do prefeito Rafael Greca de cancelar a Oficina antes mesmo de tomar conhecimento de “qualquer (...) dado sobre o quadro econômico da administração municipal”. Como é possível diagnosticar desconhecendo? E, de forma mais específica: se antes os recursos não existiam, como é possível remanejá-los? Muitas das mais de 1,5 mil pessoas que perderam suas vidas no Titanic foram vítimas de uma outra tragédia, silenciosa, que aconteceu muito antes do zarpar do navio. Os responsáveis pelos procedimentos não eram treinados o suficiente no manejo dos equipamentos, e não havia botes salva-vidas para todos. Mas, assim como nas tragédias marítimas, a curitibana também possui causas silenciosas, inauditas e esquecidas, que escondem a real dimensão estrutural do problema.
As carências no sistema de saúde curitibano não começaram hoje. Apenas para constar, reportagem publicada na Gazeta do Povo em 8 de maio de 2016 mostra que Rafael Greca foi, ao lado de Jaime Lerner, um dos prefeitos que menos investiram em saúde na história do município desde o retorno das eleições diretas.
Sugerir en passant que a batalha da classe artística é alheia ao consternar da sociedade diante dos problemas que afligem a todos, colocando-nos em confronto com outros setores, é iniciativa que pode ser classificada no mínimo como questionável. A comunidade artística não é um ente separado da comunidade. Assim como os músicos que pereceram no oceano, artistas são parte do povo. E, como é normal nos regimes democráticos, esperávamos que as ações de um prefeito eleito seriam pautadas no diálogo, e não na difamação, tentando adjetivar a comunidade culturalmente engajada como sendo “cultura de morte” ou “cultura do se lixe o meu próximo”. Isso é o mesmo que colocar a culpa da tragédia do Titanic nos músicos que lá pereceram, na imensidão do Oceano Atlântico. O que o público não sabe é que vários professores dispuseram-se a vir gratuitamente para Curitiba, mesmo após o cancelamento. Contudo, diante da intransigência na abertura de diálogo com a comunidade musical, decidiu-se que não era mais tempo de afundar com um navio que não é claro sobre a preparação de botes para todos. Além da própria questão da Oficina, há mais decisões e movimentações com nuvens de dúvidas, que prejudicam qualquer diálogo, como indica a coluna de Celso Nascimento “Milagre: verbas e remédios reaparecem em Curitiba”, publicada pela Gazeta do Povo no último dia 5.
O que verga a lógica do artigo do secretário de Finanças a ponto de transformar os 0,019% de investimento em gasto estrutural supérfluo é a campanha de desconhecimento sumário do objeto – que ele mesmo assumidamente desconhece –, sustentando a mesma tentativa de atribuir à classe artística uma imagem egoísta, arrogante e elitista. A crise não pode ser uma desculpa para criação de bodes expiatórios que visem anular o debate democrático, tão necessário após uma eleição na qual ambos os candidatos não conseguiram nem sequer superar o número de votos não válidos. Na esclarecedora tese de Jan-Werner Müller sobre o “populismo”, o autor afirma que atitudes “anti-establishment” não são insuficientes, é “essencial a falta de pluralismo”. A indagação de Brecht de que “se todo poder emana do povo, para onde ele vai?” jamais foi tão contundente.
A Oficina não tem “importância relativa”. Durante a maior guerra jamais vista, Winston Churchill foi questionado sobre cortar o financiamento das artes para colmatar os custos da guerra. Respondeu: “Então, para que é que estamos a lutar?” Esses são os sinais que as vozes da história provam decisivos. Chega a ser constrangedor ter de reafirmar que irresponsabilidade é retirar a cultura, educação e lazer do seu lugar essencial na equação de equilíbrio das contas públicas. Estes são mais do que investimentos e símbolos. São direitos.
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