Deus e o homem figuram entre os personagens mais recorrentes na história da literatura. Deles ainda não se disse tudo. Não se estudou tudo. A cada nova percepção multiplicam-se as interrogações. Como é o homem a pensar sobre ambos, até se poderia prever que o primeiro, antes ou depois, já não figuraria nas reflexões do segundo. Deus seria esquecido e a religião, superada. Os séculos passaram e parece que o homem continua em busca de Deus. E também em busca de si mesmo.
Para compreender Deus parece que precisaríamos de muita ciência. Mas, do que se conhece de Deus, para encontrá-lo os sinais apontam para a fé. E quem aceita que Deus se deixa encontrar pelas vias da fé poderá observar algumas indicações no evangelho deste domingo (Mc 7, 31-37): “Jesus saiu da região de Tiro... continuou até o mar da Galileia, atravessando a região da Decápole”. São apenas algumas citações geográficas, parecendo quase indiferentes ao conteúdo narrado. Mas, como mencionado, quem opta por crer é chamado a perceber naqueles deslocamentos uma espécie de busca, por parte do Filho de Deus, por aqueles que querem ser encontrados. É Deus que está a procurar.
O surdo e mudo nem percebia o quanto necessitava daquele encontro
A mesma palavra do evangelho narra que “Trouxeram, então, um homem surdo, que falava com dificuldade, e suplicaram que Jesus lhe impusesse a mão”. Os detalhes narrativos afiguram-se pequenos. Mas muito significativos. Não é o surdo que se aproxima de Jesus por conta própria. Tampouco pede a cura. São pessoas anônimas que o levam. Ele, o surdo e mudo, nem percebia o quanto necessitava daquele encontro. Ora, na tradição bíblica a surdez e a cegueira são figura da resistência à mensagem de Deus. Os que dela padecem não são conscientes de suas próprias insuficiências.
Mantendo a atenção desperta, o leitor atinará que os que levam o surdo até Jesus não pedem que Ele cure o deficiente. Sua súplica, muito mais do que um pedido, aponta para a “imposição da mão”. Este gesto simbolizava a transmissão da força vital. Isso seria suficiente para mudar a situação. Para os quadros culturais da época, a dúplice limitação, não falar nem ouvir, para além de uma situação física, retratava simbolicamente a condição de quem não é capaz nem de acolher e de se confiar às pessoas. Faltavam todas as disposições à comunhão. Era o emblema da pessoa solitária, sem condições de querer bem e de se deixar amar.
Aquele surdo e mudo Jesus levou à parte. Responde sem tardar. Este é outro sinal de quem está em busca de quem dele quer precisar. Relata o evangelho que o Senhor lhe tocou com os dedos no ouvido e, com sua saliva, tocou-lhe a língua. Para a linguagem do tempo do evangelista as mãos eram o símbolo da força atuante de uma pessoa. Ademais, na cultura judaica pensava-se que a saliva era uma espécie de alento condensado. Dizendo de outro modo, a saliva era portadora do espírito da pessoa. A aplicação da saliva significava a transmissão do espírito de Jesus.
Provavelmente não é a surdez nem a mudez física a nos golpear. Com tantas informações e tantos acessos diários a quase tudo o que a imaginação nos sugere, facilmente seríamos levados a pensar que vivemos em uma sociedade e em uma cultura bastante feliz, pois são imensas as possibilidades técnicas de encontros e convivências. As distâncias físicas quase não existem. O que falta, então, que, apesar de tantos avanços, parece que somos hoje um povo mais “surdo e mudo” que outrora? Que resposta poderíamos dar a nós mesmos?
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