A arte, justamente por transcender o ordinário, costuma germinar as interpretações mais precisas e, ao mesmo tempo, admiráveis do tempo, da história e do mundo em geral. Um exemplo: uma das mais interessantes e sombrias análises do regime nazista, na Alemanha, provém de Doutor Fausto, romance de Thomas Mann.
Nesta, que é uma de suas obras-primas, ele dedicou-se a equiparar, por meio de uma analogia, a ascensão do Terceiro Reich à popular lenda de Fausto, muito conhecida sobretudo na Alemanha. Na lenda, reproduzida e interpretada por vários outros literatos, como Goethe, conta-se a estória de um alquimista que, inconformado e aflito com suas limitações, assina um pacto de sangue com o diabo, oferecendo-o sua alma em troca de conhecimento autêntico ou prazeres inigualáveis, a depender da versão da história. Em Doutor Fausto, o pacto é assinado por um compositor, Adrian Leverkühn, que buscava, com isso, criar uma música que quebrasse todos os paradigmas musicais e espirituais do seu tempo. Também a Alemanha, com o nazismo, buscou e conseguiu romper todos os paradigmas em termos de violência, intolerância e desumanidade, de modo que a analogia mostra-se absolutamente pertinente.
Mann fazia parte do rol de intelectuais que, desde sempre, colocaram-se contra o nazismo, o que, naturalmente, obrigou-o a abandonar o seu país rumo aos Estados Unidos, onde se exilou e, então, escreveu a referida obra, que não deixa de ser um apelo à defesa do humanismo e da racionalidade em tempos sombrios.
Guardadas as devidas proporções e a despeito de todas as diferenças contextuais e históricas com o período narrado por Mann, não parece ilógico afirmar que, hoje, estamos a viver tempos sombrios, marcados pela tão comum substituição de qualquer ideal de racionalidade por demagogia, intolerância e violência. A lista de consequências é extensa: problemas complexos têm toda a sua magnitude ignorada e, não raro, elege-se algum bode expiatório como o seu verdadeiro causador; evidências científicas são absolutamente ignoradas e substituídas por interesses de ocasião; aspectos e pautas morais e sociais relevantes são, de imediato, desacreditados, ironizados como pertencentes ao “politicamente correto”, este álibi retórico que não tem tido outra utilidade que não seja a negação de violências discursivas recorrentes e, não raro, veladas.
O apoiador do presidente eleito é um apoiador convicto do machismo, da xenofobia e do uso da força
Tudo isso é explicitado e confirmado pela eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, e pela infelizmente esperada exaltação deste fato por muitos, aqui no Brasil, à qual se somou o lamentável desejo de que algo semelhante se repita no país, nas eleições presidenciais de 2018.
É sem dúvida irônico, como costuma ser a vida, que um candidato com pautas de causarem inveja a muitos fascistas tenha sido eleito justamente no país onde Mann, uma vítima do regime de Hitler, encontrou refúgio. Embora Mann não esteja mais entre nós, os ecos de seu alerta não perderam força, ainda podendo ser ouvidos e sentidos – agora, mais do que antes.
A eleição de Trump é, antes de tudo, a vitória do obscurantismo, da irracionalidade e de um discurso fortemente nacionalista, anti-humanista e anti-humano. Contra isso, somente nos restam suas antíteses: é importante que se vislumbre o uso da razão e da crítica que ela pressupõe, ainda que enquanto um ideal e reconhecendo todas as suas inexoráveis limitações, de forma a obstar a sujeição passiva a pregações de ódio, intolerância, intransigência e incompreensão da condição do diferente. Despir-se de algum ideal nesse sentido pode significar despir-se de qualquer referencial teórico e prático, de forma que se substituem os argumentos pela força, pela autoridade e pela ditadura da fé, como adverte o narrador de Doutor Fausto, a quem somente restou um lamento: “para que precisamos ainda de palavras, para que escrevemos, para que serve a língua?”
Portanto, é importante desmascarar, com argumentos e com o uso da razão, todas as fraudes e aberrações do discurso de Trump. É necessário que um discurso de defesa sincera e autêntica das liberdades e direitos individuais de todos, não de alguns, sobreponha-se à retórica nacionalista e excludente que marca Trump e seus defensores. E isso ainda que, por várias vezes, o diálogo tenha de ser travado com quem se indispõe ao diálogo. Como regra, o apoiador do presidente eleito é, explícita ou implicitamente, um apoiador convicto do machismo, da xenofobia e do uso da força ou da retórica vazia, em lugar de argumentos. A empreitada é difícil, mas não parece haver saída que não seja essa.
É preciso, enfim, que todos sejam estimulados a se imaginar no lugar do outro e um dos meios mais eficientes para isso é a literatura, que inexiste sem esse exercício de alteridade. Pode estar aí, então, um remédio para essa recente onda de intolerância. Devemos ter em mente que, de algum modo, somos todos responsáveis por nossas decisões, sejam elas tomadas em âmbito pessoal ou na arena política, ainda que elas impliquem numa malfadada submissão às ideias escusas de líderes obtusos. Este é o preço da liberdade.
Devemos procurar ser como queremos que os outros sejam. Devemos, também, procurar perceber as repercussões de nossas ações para os demais, tanto como padrão de agir, como quanto às consequências, boas ou ruins, que o ato gera. Se os eleitores de Trump estão cientes das consequências da eleição do magnata, sobretudo para determinados grupos, poderiam eles dizer que desejam essas consequências a si mesmos? Pode aquele que tem o privilégio da liberdade não desejar a liberdade e vida digna ao seu semelhante? O problema pode estar também na incompreensão de que somos todos seres humanos, que merecem a mesma consideração e respeito. Assim, chega-se ao questionamento: a alteridade é o experimento da condição do outro, mas como alcançá-la se nem sequer o vemos como um igual?
Ao descrever o que sentiu após os últimos atentados em Paris, em um livro cujo título é particularmente propício ao momento atual (Como curar um fanático), o escritor israelense Amós Oz indagou-se, surpreso: “Quem poderia imaginar que depois do século 20 viria logo a seguir o século 11?” A eleição de Trump – e todo o apoio que ela tem recebido no Brasil – comprova que o obscurantismo (termo que se refere à ignorância ou, metaforicamente, ao estado de quem está privado de luz) não encontra limites geográficos, nem tampouco se restringe a uma religião. Mas ele não é insuperável e deve ser combatido, antes que esta tragédia iminente adquira contornos incomensuráveis.
“Make America great again”, dizia Trump, em sua campanha vitoriosa. O nostálgico lema exulta um nacionalismo sectarista e excludente. O discurso de Trump trouxe claramente a premissa de que “tornar a América grandiosa novamente” pressupunha uma política de imigração fechada (extreme vetting); afinal, os imigrantes, principalmente mexicanos, seriam responsáveis pela alta criminalidade no país, prejudicando assim a realização do “sonho americano”, este último destinado exclusivamente aos estadunidenses.
“Build the wall!”, bradavam em coro os presentes nas convenções do Partido Republicano. “Construam o muro!” Hoje, o mundo, assim como muitos estadunidenses, lamenta a eleição de Trump; afinal, apenas quando pudermos entender a condição do outro é que teremos uma sociedade mais justa e solidária. Apenas quando caírem os muros que nos separam.
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