| Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo

Na biografia que escreveu sobre o poeta Richard Savage, Samuel Johnson usou a vida do amigo como objeto para uma reflexão moral e psicológica de forma a compreender como era possível alguém perseverar no erro “sem atribuir nenhuma de suas misérias a si próprio”, não crescer “em sabedoria” nem impedir “que a um revés se seguisse outro”. E que “de bom grado afastava os olhos da razão quando ela poderia desvelar-lhe a ilusão e iluminar aquilo que jamais desejava ver: seu verdadeiro estado”.

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Em seu mais recente livro publicado no Brasil, Não com um estrondo, mas com um gemido – A política e a cultura do declínio, Theodore Dalrymple usa a observação de Johnson sobre Savage para refletir sobre a necessidade de superar esse drama da existência humana a partir de um autoexame honesto, algo que atualmente é desencorajado pela cultura moderna e pelas políticas públicas que alimentam o Estado de bem-estar social. “Ao estimularem a atribuição de todas as misérias aos outros”, alerta Dalrymple, a cultura moderna e o Estado de bem-estar social “acabam por exercer uma influência nefasta sobre o caráter humano”.

Num ambiente de desejos ilimitados para realizações limitadas, quem antecipa a sua pretensão por meio da Justiça prevalece sobre os demais

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Pseudônimo do médico psiquiatra e escritor Anthony Daniels – que, aliás, profere palestra nesta segunda-feira, em São Paulo –, Dalrymple trata do problema no âmbito da Inglaterra, mas uma parte desse tipo de mentalidade, de intervenção estatal, e de suas consequências pode ser observada no Brasil. Aqui, a supremacia dos direitos tem produzido uma geração de mimados e soterrado o sentido de dever e de responsabilidade. Todo mundo tem direito e, portanto, o outro (indivíduo ou Estado) é sempre devedor. A estrutura psicológica é baseada no “eu exijo meus direitos porque alguém me deve algo”. E a culpa pela miséria, condição social ou ignorância individual é, à maneira de Savage, sempre de um terceiro, nunca da própria pessoa.

Na atual dinâmica social, a lei é um instrumento eficaz de infantilização da sociedade via atribuição de “direitos sociais”. A norma que impõe qualquer tipo de “gratuidade”, por exemplo, transmite para o beneficiado a ideia de que obter privilégios estatais é preferível a conquistar o que quer que seja. Agora imagine o resultado no comportamento social de gerações que nasceram e foram beneficiadas por diferentes tipos de benefícios. A ética do esforço e o orgulho da conquista deixam de ser um valor para se transformar num estorvo. Se ganhar é mais fácil, por que empreender esforços para conseguir algo?

O intelectual americano Thomas Sowell tem uma frase definitiva sobre o tema: a primeira lei da economia é a escassez. A primeira lei da política é ignorar a primeira lei da economia. Portanto, num ambiente de desejos ilimitados para realizações limitadas, para usar uma das características do homem identificada pelo filósofo Arthur Schopenhauer, quem antecipa a sua pretensão por meio da Justiça prevalece sobre os demais. Temos, então, a curiosa contradição: a ideia de igualdade que fundamenta o Estado provedor põe em causa o sistema de bem-estar social pela escassez de recursos. Hoje, a disputa por benefícios por parte de pessoas simples a grandes empresários é uma espécie de versão atualizada do estado de natureza descrito por Thomas Hobbes, que não poderia imaginar que seria o próprio Estado o instrumento de sua realização.

Se o grande problema político do século 19, como notou Ubiratan Borges de Macedo (em A Liberdade no Império, de 1977), era tridimensional – criar um Estado nacional para libertar-se do estrangeiro; libertar-se do absolutismo; e instituir um sistema constitucional representativo para substituir a antiga ordem política –, um dos grandes problemas políticos do século 21 é a nova natureza do Estado num ambiente de dependência estatal e de servidão voluntária. Porque a sociedade mimada e infantilizada está cada vez mais sedenta por direitos e negligente quanto à sua responsabilidade.

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