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Bruno Garschagen

Entre crises e viroses, por que 2016 foi um bom ano

 | Antônio More/Gazeta do Povo
(Foto: Antônio More/Gazeta do Povo)

Crise política. Crise econômica. Crise ética. Crise moral. Qual de nós, brasileiros, discordaria dessas afirmações sobre o estado de coisas da nação? Mas, se tudo é crise, fica a dúvida sobre o que é realmente crise, ou se estamos atravessando um período turbulento e transitório criado pelos políticos que não pode ser definido como crise tal qual a conhecemos e a definimos.

Lendo jornais, discursos parlamentares e textos de intelectuais e políticos do século 19 para o meu doutorado, dou-me conta de que, no Brasil, a crise é um hábito verbal ao longo da história. Digo mais: a crise é um elemento cultural que nos torna brasileiros. Pode ser uma crise passageira, uma crise prolongada, uma crise profunda e complexa, pode até nem ser crise.

Acostumamo-nos, porém, a batizar de crise tudo aquilo cuja explicação nos escapa ou tudo aquilo que sofremos por não assumirmos a responsabilidade que nos cabe. Se delegamos o que nos cabe fazer, portanto, as consequências dos atos de terceiros sobre as nossas vidas são definidas como crise.

Ser brasileiro é, antes de tudo, ser um fracassado orgulhoso de seu infortúnio

Mas, acompanhem o meu raciocínio, se tudo é crise, com o tempo a própria crise perde o seu significado e nada mais será realmente crise, pois não? Exemplo recente é o da palavra “golpe”. No âmbito da política, golpe tem um sentido muito bem definido – e o presidencialismo no Brasil é useiro e vezeiro do golpismo como método. Mas, se tudo é golpe, da derrubada de um governo mediante coerção à aprovação da PEC do Teto, o que é, afinal, um golpe?

Na medicina, a alteração de significado não tem função ideológica, mas a mudança também serve para esconder algo. Se um médico ignora a doença a partir do sintoma do paciente, não tem qualquer escrúpulos ao dar o diagnóstico definitivo, imperial, científico: virose.

Em certo sentido, nos tornamos uma nação de portadores de viroses as mais variadas. Virose tornou-se um diagnóstico-coringa para muitos profissionais que não têm o que dizer aos pacientes em busca de cura para os seus males. Tenho conhecidos que foram diagnosticados com virose a partir de sintomas tão distintos quanto dor de cabeça, dormência na coxa esquerda, comichão no órgão reprodutor. Um amigo, por exemplo, foi internado com virose e saiu do hospital a exibir orgulhosamente uma ponte de safena.

Na medicina, sabemos, o diagnóstico-coringa “virose” só tem o poder de esconder a ignorância do médico. Na política e na economia, o diagnóstico-coringa “crise” tem, igualmente, o poder de esconder a ignorância de seu causador ou do comentarista da hora.

E se usássemos logo a palavra “virose” em vez da hoje desgastada, pálida, surrada palavra “crise”? Imaginem a cena: o presidente dizendo que o governo não tem dinheiro para financiar os seus gastos altos e ineficientes em virtude de uma virose econômica; os deputados e senadores atribuindo a responsabilidade por todos os problemas à grande virose política; a imprensa ajudando a inocular na sociedade a ideia de que existe uma virose e que esta é a causa de todos os males.

Ver crise em tudo é um traço da nossa identidade. Porque nos acostumamos a só enxergar o lado ruim das coisas. Nosso espírito, aos poucos, torna-se amargo pela apuração do olhar que só registra os elementos negativos da vida. Ser brasileiro é, antes de tudo, ser um fracassado orgulhoso de seu infortúnio.

Tal treinamento vicioso nos torna insensíveis e incapazes de reconhecer o que temos de virtuoso. Das coisas mais simples às mais grandiosas. Sei que a maioria de nós lembrará de 2016 como o ano que terminou com algumas explosões e muitos lamentos (obrigado, T.S.Eliot).

Mais do que isso, entretanto, 2016 foi um ano fundamental para o período de transição que estamos a viver no Brasil neste momento. Melhoramos muito porque saímos do ponto zero. Mas há muito, muito a ser feito. O nosso futuro breve será mais ou menos virtuoso somente se nos esforçarmos para sermos melhores e assumirmos os deveres e responsabilidades de viver em comunidade. Caso contrário, continuaremos a falar de crises com a mesma satisfação e naturalidade com que certos médicos diagnosticam viroses.

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