O governo federal tem veiculado propaganda nos canais de televisão anunciando as mudanças do ensino médio, recentemente aprovadas pelo Congresso Nacional. Na peça publicitária, jovens manifestam seus sonhos pessoais e, como resposta, o governo anuncia que o novo ensino médio responderá aos anseios da nova geração.
Em síntese, a mensagem divulgada relaciona as expectativas de se ter uma profissão, como ser jornalista, professora ou designer de games, com as mudanças no ensino médio, que dão mais liberdade ao aluno para organizar seu currículo.
Ainda no calor da divulgação da medida provisória, participei de uma reunião de pais de um colégio estadual na qual ouvi um pai dizendo que seu filho não precisaria estudar Filosofia ou Sociologia, pois seu sonho seria fazer Medicina.
Mas a primeira coisa que precisamos compreender é que a reforma do ensino médio em nada altera o atual modelo de acesso ao ensino superior. Não estão em discussão mudanças no vestibular ou no Enem; assim, qualquer ênfase que o estudante escolha no ensino médio possivelmente não vai alterar em nada sua capacidade de acessar um curso superior. Afinal, não se falou que os vestibulares para os cursos de Engenharia, por exemplo, deixarão de ter questões das áreas humanas, tampouco terão ênfase na área de exatas. Assim, as provas de conhecimentos para o acesso ao ensino superior deverão continuar tendo o conteúdo comum e geral a respeito das disciplinas que todos estudam no nível médio.
A reforma do ensino médio em nada altera o atual modelo de acesso ao ensino superior
Hoje, um estudante que pretenda cursar Medicina, por exemplo, precisa ter domínio de todas as disciplinas cobradas no vestibular, e não pode aderir ao discurso preguiçoso de que não precisa ter conhecimentos de Filosofia, Sociologia ou Português, e isso não deve mudar com a dita reforma do ensino médio.
Cá entre nós: mesmo que não fosse obrigatório, seria no mínimo desejável que um médico, ou qualquer outro profissional, tivesse uma base consistente de conhecimentos gerais. Por isso, não faz sentido nenhum a propaganda do governo federal, que sugere que futuros profissionais de jornalismo, licenciaturas ou designers de games mereçam ter diferenças na sua base de formação educacional de nível médio.
De fato, o acesso ao ensino superior é ainda um assunto sensível na sociedade, que se ressente das limitações de vagas nas profissões mais desejadas. O modelo meritrocrata beneficia alguns, que têm acesso a escolas caras que oferecem verdadeiros “treinamentos” para passar no vestibular, e exclui a grande maioria dos jovens, que só podem acessar os conteúdos básicos e obrigatórios do currículo legal, sem maiores recursos para se preparar.
Certamente, a formação escolar não é o único fator determinante, o que explica que mesmo estudantes com poucos recursos possam ter bons resultados no vestibular, e também o inverso. A determinação e a força de vontade, entre outros fatores complexos, cumprem papel importante, mas a desigualdade no acesso ao ensino médio de qualidade tem um grande peso na desigualdade do acesso ao ensino superior. Por isso, medidas como as cotas sociais e raciais são respostas efetivas para enfrentar a mera repetição dessa realidade, pelo menos até que haja efetiva redução das desigualdades na sociedade.
Nesse quadro, a reforma do ensino médio caminha no sentido contrário, e pode piorar o fosso da desigualdade no acesso ao ensino superior, já que o currículo legal e obrigatório que será oferecido para a grande maioria dos jovens estará fatiado e reduzido, enquanto os alunos das escolas preparatórias para o ensino superior continuarão tendo intensos treinamentos sobre todos os conteúdos cobrados no vestibular.
A realidade atual é que muitos alunos de escolas públicas têm pouca expectativa de acessar o ensino superior. Com isso, são pouco estimulados a se empenhar no ensino médio, o que produz evasão e formação precária. A reforma do ensino médio vem como uma suposta resposta a esse quadro, visando “estimular” os adolescentes a estudarem conteúdos dinâmicos, reduzir a evasão e possibilitar mais anos de estudo. Entretanto, o que realmente estimularia os estudantes a permanecer no ensino médio seria melhorar o acesso ao ensino superior.
Confiantes de que poderiam acessar uma profissão superior – no espírito da propaganda do governo –, os jovens poderiam dedicar mais energias ao ensino médio, em busca de um futuro melhor. Para isso, a chave seria reformar o acesso ao ensino superior, ampliar vagas nas instituições públicas e fortalecer o currículo das escolas públicas com foco nos conteúdos que são cobrados nos vestibulares.
Por isso, entendo que a propaganda do governo identifica verdadeiramente o anseio do estudante da escola pública, que quer acessar uma profissão, seja pelo ensino superior ou pelo ensino técnico, mas o que é oferecido como resposta pelo governo é contrário às expectativas; afinal, a reforma do ensino médio nada mais é do que redução de custos e de responsabilidades dos governos com a educação dos jovens.