Uma das muitas peculiaridades do Brasil é a distância entre o papel e a realidade. Na lei e no discurso oficial somos moderníssimos: uma Suíça dos trópicos. Na realidade, temos um país multifacetado, em que os tons de cinza não dão lugar ao preto e branco.
À escravidão, por exemplo, existiu até a Lei Áurea, mas simplesmente não era mencionada na legislação do tempo. Existia na prática, na dura realidade dos escravizados, mas no papel sua ausência é que chamava a atenção.
O mesmo ocorria no século passado com esta outra triste instituição brasileira, a violência policial. Presumia-se, quando foram escritos nossos Códigos Penal e de Processo Penal, que a polícia daria um brutal "corretivo" no ladrão, normalmente de classe baixa. O resultado é que temos uma lei que presume que ocorra um castigo ausente dos textos legais. Assim, só iria preso quem tivesse apanhado feito boi ladrão (extraoficialmente...) muitas e muitas vezes, e não se emendasse.
No século passado, contudo, esta ordem implícita foi abalada pela entrada de jovens de classe média no crime. Os membros hoje no poder dos grupos armados de extrema-esquerda assaltaram bancos, sequestraram e cometeram outros crimes que antes eram o triste apanágio dos "fregueses" comuns da polícia: os pretos pobres, sem voz e sem direitos. Quando apanhados, os métodos clássicos de "investigação" entraram em ação: muita pancada até entregar o resto do bando. Quando as técnicas brutais antes reservadas àqueles que não tinham voz foram aplicadas a jovens de classe média é que surgiu a grita contra as torturas da ditadura, que hoje ainda dá Ibope.
Ora, a diferença não foi a ditadura. A diferença foi a vítima da tortura: não mais apenas o bandidinho de periferia, mas o assaltante de elite, com razões políticas, capaz de se fazer ouvir.
Com a redemocratização, os justos protestos contra a recém-descoberta brutalidade policial fizeram com que ela fosse cada vez mais cerceada, deixando de ser habitual em muitos estados.
A lei, contudo, continua presumindo que haja uma selvagem punição extraoficial, que não mais existe. O resultado é que os ladrões simplesmente não são mais punidos: não apanham mais, mas tampouco são presos. Essa impunidade faz com que o crime compense, num ciclo vicioso que vitima principalmente os mais indefesos, especialmente as mulheres pobres, sem condições de pagar por muros e alarmes. Como isso gera uma justa revolta popular, corremos o risco de ter substituído a tortura pelos linchamentos.