O sintoma mais evidente da dissolução pós-moderna da sociedade ocidental é a perda total da capacidade de perceber a realidade. Enquanto a modernidade afirmava paradoxalmente a impossibilidade de conhecer a coisa em si e a universalidade da razão, a pós-modernidade nega esta. Não se pode conhecer nem o próximo nem a mente do próximo. Só o que se pode fazer é projetar nele as nossas fantasias e anseios, e isso se por acaso a realidade nos forçar a perceber sua existência.

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É o que ocorre a cada vez que um muçulmano fanático chacina dezenas – ou mesmo milhares – de inocentes, como ocorreu novamente nos Estados Unidos no fim de semana passado: antes mesmo de os corpos esfriarem, o discurso de que “este não é o verdadeiro Islã” já dá as caras. Ora, o que seria o “verdadeiro Islã”? Mais ainda: quem seria capaz de dizer o que ele efetivamente é? O “verdadeiro Islã” do discurso da esquerda ocidental, curiosamente, parece-se muito com... a própria esquerda. Ele “acolhe os LGBT”, ele é pacifista, ele é “espiritualizado, mas não religioso” (o que quer que isso signifique; só lembro que “espiritual e profundo” é uma boa definição do demônio) etc. O “verdadeiro Islã”, assim, é algo que faz enorme sentido em San Francisco ou na Rive Gauche, mas que é completamente desconhecido na vasta área muçulmana entre o Rio Jordão e o Hindu Kush.

Antes mesmo de os corpos esfriarem em Orlando, o discurso de que “este não é o verdadeiro Islã” já dava as caras

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Nessa área, homossexuais são alternativamente enforcados (no Irã xiita) ou jogados do alto de prédios (pelo Daesh sunita). A única “paz” que se busca pode ser traduzida por “submissão” (“Islã” significa “submissão”, e tem o mesmo radical de salaam, “paz”). Não se trata de algo pregado por uma minoria barulhenta, como o suposto cristianismo de algumas seitas odientas no Ocidente. Quando a Pérsia se tornou uma teocracia muçulmana xiita pelas mãos do aiatolá Khomeini, a população em peso o apoiou e o percebeu como encarnando perfeitamente os ideais da religião islâmica. Do mesmo modo, na Arábia a família real só apoia financeiramente os pregadores do Islã sunita mais fanático para preservar o trono, pois a população em peso prefere estes àquela.

O “Islã verdadeiro” nas terras que são islâmicas há mais de mil anos é o Islã intolerante que mata homossexuais e considera “mártir” quem morre chacinando o próximo. Um americano ou europeu (ou pau-mandado seu na esquerda brasileira) pregando-lhes do Ocidente, em tom paternalista, a versão “multicultural” do discurso da esquerda ocidental que após cada atentado os jornais chamam de “Islã verdadeiro” faz tanto sentido quanto um mulá do interior do Afeganistão que viesse nos dizer que o “catolicismo verdadeiro” exigiria que a mulher andasse coberta por uma fronha gigante, vendo o mundo por furinhos na altura dos olhos.