Começo lembrando aos donos de restaurante que hoje é o Dia do Pendura, em que os futuros senhores doutores advogados iniciam-se em suas artes maliciosas, bebendo, comendo, discursando e saindo sem pagar.
Mudo então de lado para defender que os advogados brasileiros sejam “doutores”. Mais ainda: os advogados é que são verdadeiramente “doutores” no Brasil. É irrelevante – a não ser, claro, para advogados – se uma lei do tempo do Império lhes teria ou não dado o título; eles são, sim, doutores justamente porque a língua portuguesa não se dobra a leis ou a regrinhas acadêmicas.
Costumo dizer que “doutor” é quem só carrega peso por gosto
O título de “doutor”, na nossa língua, não tem absolutamente nada a ver com o dito doutorado. Tem, sim, a ver com classe social e, de certa maneira, com conexões pessoais e familiares. Nossos primeiros “doutores” eram os filhos de fazendeiros (por sua vez “coronéis”, pois compravam tais títulos da Guarda nacional) que iam estudar em Portugal e ao voltar ao Brasil fixavam-se nas capitais, dedicando-se no mais das vezes à política. Foram eles que fizeram a transição do poder rural para um poder urbano que gerou ao longo das gerações a nossa classe média. Assim, o “doutor” é na nossa língua basicamente aquele que trabalha com o intelecto, não com as mãos. Costumo dizer que “doutor” é quem só carrega peso por gosto. Daí o título ser dado, tradicionalmente, aos bacharéis em Direito e Medicina, os dois cursos universitários tradicionais mais afastados do trabalho manual. O terceiro dos três cursos tradicionais, o de Engenharia, era normalmente cursado em instituições militares e voltado para usos castrenses, e por isso seus graduados tinham posto, não título de doutor.
Muito tempo – mais de século! – depois foram importadas instituições universitárias ao modelo das alemãs, com sua progressão, baseada na Universidade medieval, de bacharelado, licenciatura, mestrado e doutorado. Coisa extremamente recente, e que a meu ver deveria ter sido feita de outra maneira, com outros nomes, justamente para evitar confusão. Ter um diploma do que se convencionou chamar de doutorado é uma coisa; ser “doutor”, no sentido brasileiro da palavra, é outra, completamente diferente e muito mais importante do ponto de vista social. O mesmo, aliás, ocorre com o diploma de “mestre”, que se apropriou de um termo que designa tradicionalmente todo professor.
Pelo menos no mais das vezes os pobres arrivistas, agarrados a seus duramente conquistados canudos universitários que mentirosamente os proclamam “doutores”, são coincidentemente também “doutores” de verdade, no sentido brasileiro do termo: afinal, raro é o portador de diploma de doutorado que tenha que ganhar o pão com trabalho braçal. Menos mal.
Parabéns, doutores!