Os domingos precedentes nos apresentaram um Jesus dominador das doenças e das potências demoníacas. Hoje o seu poder se dilata para abraçar os elementos da natureza em sua representação mais grandiosa e poderosa: o mar. O tema é fundamentalmente o mesmo, porque, no simbolismo da Bíblia, o mar, embora sujeito ao domínio de Deus, permanece um mundo cheio de mistérios e perigos, em virtude da profundidade de seus abismos, da amargura de suas águas, do perpétuo flutuar de suas ondas, de sua força destruidora quando se desencadeia. Por isso torna-se a mais eloqüente e eficaz a imagem das forças do mal, orgulhosas e ameaçadoras, que encontram um plástico simbolismo nos míticos e fabulosos monstros que a fantasia popular coloca em seus abismos. Contudo, o mar, esta realidade poderosa e tumultuosa, está sujeita a Deus.
Deus estava lá quando ele nasceu, saindo do seio da terra, como uma criança indefesa, o envolveu de faixas (névoas) e o vestiu (nuvens). O Salmo de meditação e o evangelho, acentuando o senhorio de Jesus sobre o mar, nos sugerem a invocação confiante em Deus nos perigos, e a admiração e o temor diante do poder do Senhor que ordena. Os dois trechos da Sagrada Escritura apresentam o mesmo esquema literário: a situação de perigo (o desencadeamento das forças do mar), a invocação confiante a Deus, a intervenção miraculosa do Senhor, a da fé - confiança nas provações torna-se central no evangelho. Jesus faz aos Apóstolos a pergunta que é uma repreensão: "Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?"
É estranho que Jesus os censure por falta de fé, justamente quando se dirigem a Ele cheios de confiança. Evidentemente, Jesus reprova aqui não a confiança, mas a atitude interesseira de uma confiança que procura unicamente obter alguma coisa. Esta fé é muito imperfeita. O homem primitivo tinha instintivamente o senso do sagrado, viva suas relações com a natureza como se seres divinos presidissem a sucessão implacável dos acontecimentos, dos quais se sentia um joguete. O mundo divino o fascinava, mas lhe inspirava uma espécie de terror sagrado. Procurava então, por ritos mágicos tornar propicia a divindade. O homem moderno atingiu um notável domínio sobre as forças naturais que cresce a cada dia. A natureza não lhe incute temor; sente-se aí à vontade, escolhe-a como quadro e matéria de uma obra histórica a plasmar com suas próprias forças. Considera a atitude de seus antepassados como fonte de alienação. Mesmo quando se encontra diante de acontecimentos inesperados, um terremoto, por exemplo, sua reação imediata e a de procurar para eles explicação científica e não mais a de dirigir-se ao mundo divino. Isto implica uma mudança da própria imagem de Deus.
Deus não é visto, só ou principalmente, como fundamento, garantia e vingador da ordem da natureza. O Deus da fé transcende o mundo, ultrapassa suas leis, e não pode ser alcançado só a partir do mundo e de seus acontecimentos. Nosso Deus, não é o deus das falsas seguranças humanas. Não é a fórmula que soluciona a nossa dificuldade e os nossos problemas; seria Ele um Deus alienante, tapa-buracos. Seria uma falsa fé a que buscasse Deus só como consolação individual e solução imediata das dificuldades em que nos encontramos. Na base desta fé estaria não a disponibilidade absoluta nas mãos de Deus, mas a tentativa de " utilizar" Deus para proteger nossa segurança. Ter fé significa abandonar-se a Deus mesmo quando ele "dorme", porque sabemos que nenhuma dificuldade pode vencer-nos; Deus já as venceu. Isto, porém, não nos isolará do mundo, fazendo-nos passar por cima dos seus problemas, pois sabemos que o plano de Deus é libertar o mundo do mal, e que, neste processo de libertação, o cristão é chamado a colaborar, lutando ao seu lado, levando a sério seus problemas sem desanimar.
Dom Moacyr José Vitti CSS é arcebispo metropolitano.