É famosa, na Bíblia, a passagem em que o povo judeu, no meio do deserto, cansado de comer o insosso maná caído do céu, tem saudade das cebolas comidas no Egito, no tempo da escravidão.
Segundo a narrativa bíblica, a tentação de manter-se numa relativa “zona de conforto” parece ser mais forte (ou quase) que o desejo de liberdade.
Nossa cebola egípcia é o regime militar de 64. Diante dos descalabros de corrupção que estão vindo à tona, muitos parecem sentir saudade dos tempos do autoritarismo. Não votávamos, não decidíamos os rumos da nação, mas dormíamos tranquilos acreditando que outros velavam pela idoneidade da vida pública.
Bem, nem todos nós dormíamos tranquilos – muito pelo contrário. E, num regime autoritário, é difícil saber se não existe corrupção ou se ela apenas não se torna conhecida.
Para quem se adequava ao sistema, a vida pública era bem mais confortável do que hoje, quando estamos todos escandalizados com o que acontece, e nossa indignação parece se unir à nossa impotência.
Éramos mais impotentes nos tempos do regime militar, mas naquela época a impotência era tanta que muitos nem sequer a percebiam.
O coração humano padece das mesmas tentações em todos os lugares
Tenho amigos entre os que têm pedido a volta dos militares. A seu favor, tenho de reconhecer que muitos militares transmitem uma sensação de idoneidade maior que muitos políticos brasileiros.
Instituições com rígidos códigos de conduta, com um processo formativo bem estabelecido e normas claras, costumam ter quadros com comportamento confiável. Não é à toa que, em sondagens de opinião, os bombeiros aparecem sempre entre as instituições consideradas mais confiáveis pela população.
Mas o coração humano padece das mesmas tentações em todos os lugares. Escândalos de corrupção entre policiais podem ser exceções, mas mostram que não dá para confiar cegamente no fato de uma pessoa ter vindo das Forças Armadas para pensar que não será passível de ser corrompida.
Além disso, esses quadros, com sua formação rígida e focada, tendem a ter mais dificuldade para avaliar situações e encontrar soluções que fujam do contexto para o qual foram treinados. Os desmandos cometidos durante o período de 64 – e não se pode negar que eles ocorreram – provam isso.
A Bíblia conta que Deus encheu o deserto de codornizes para alimentar os judeus. Mas só quando deixaram de cobiçar as cebolas egípcias e se comportaram de modo adequado e construtivo ao momento em que se encontravam. Nossas codornizes virão – e espero que com a colaboração inclusive dos militares –, mas não se ficarmos saudosos das cebolas egípcias.
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