O velho, como lhe chamavam os nem tão jovens, observava, pelas frestas da persiana da sua sala envidraçada, o corre-corre da redação. De pé, tomando a sétima ou oitava xícara de café do dia, sentiu saudades da época das máquinas de escrever, do barulho incessante obrigando a quase gritarem, deixando a tensão permanente quase despercebida; era natural. Agora, com esses teque-teques macios de teclados confortáveis e o schuf-schuf deslizante de sapatênis quase escorregando num bailado ridículo, a tensão era escancarada, e eles não davam conta.
Aguardava a correção do editorial. Ainda acreditava no escolhido, mas cada vez mais tinha medo. Se estivesse errado, não haveria mais ninguém para sucedê-lo. Será que se revelasse sua intenção despertaria ambição no rapaz, ele assumiria suas convicções, arriscaria mais? Não, provavelmente não saberia lidar com a responsabilidade, ficaria ansioso, depois angustiado, não duvidava caísse doente. Teria de ser assim, sem ele saber e, aos poucos, dando tarefas específicas e corrigindo até que se tornasse, minimamente, um homem, “digo, jornalista”. Sorriu, sem achar graça.
Fingiu não tê-lo visto entrando na sala correndo desconjuntado, naqueles passos apertados e reticentes, ombros moles, óculos quase escorrendo do nariz e folhas amassadas escapando das mãos acanhadas. “O senhor acha mesmo uma boa linha dizer que o ‘Escola sem Partido’ já venceu mesmo que perca?”. Não respondeu, passava o dedo pelo escrito, verificando vírgulas, pontos, a ênfase, especialmente a ênfase. “E o Camacho?”. Camacho era o colunista mais importante do jornal, que ferrenhamente atacava o tal projeto e seus defensores. Ignorando o escolhido, seguia lendo. O texto ainda não estava como ele queria, mas não havia mais tempo. Elogiou, porém, mandando sentar. Acendeu um cigarro, duas tragadas, passando a língua pelos lábios, então começou:
Só de serem obrigados a combater esse projeto estão furando o próprio balão.
“E daí o Camacho? Ele não se diz democrata? Se vier me encher o saco, vai me ouvir acusá-lo do que acusa os outros. O destempero dele é prova do que estamos dizendo aqui, você não vê? A hegemonia esquerdista a la Gramsci vem derretendo. Só de serem obrigados a combater esse projeto estão furando o próprio balão. Inventaram agora outro projeto, cópia descarada desse daí, só pra tentar ganhar na guerra de narrativas. Mas só de se falar nisso, no dia a dia, já perderam, já não estão mais à vontade, não, para impor sua visão de mundo como se fosse única. Por isso tanto faz que lei seja aprovada no Congresso ou onde for! O Camacho é da minha geração, o desespero é de quem sabe isso. Agora só resta tirar a máscara e partir pra guerra, como vem fazendo, com o verniz democrático se dissolvendo. E essa meninada aí que se tornou de esquerda por fotossíntese, cantando ‘Lula lá’ e acreditando que sua visão de mundo é a de todo mundo, menos dos ‘maus’, vai sofrer muito agora. Ou confrontam a inexistência de fundamento de suas crenças, tendo de estudar, até que enfim, se quiserem lutar mesmo, ou vai ser só essa histeria apavorada aí. Não seja assim, por favor.”
Alberto fechou a porta, delicadamente. Chegando à sua baia de trabalho, pensativo, lembrava da prova de História que o filho fizera na escola, só agora se dando conta que 70% dela era de questões louvando a carteira de trabalho, direitos trabalhistas, coisas assim. Teria razão o velho? Não acreditava, parece necessário algo mais para quebrar a hegemonia, mas o quê? Pensava nisso quando Camacho interrompeu, querendo saber do editorial. Não teve coragem de contar.
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